Na democracia, não se pode querer fuzilar adversários

Os alvos preferenciais dos discursos de ódio estão nas minorias sociais e nos grupos mais vulneráveis

Foto: EVARISTO SA / AFP

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O assunto é recorrente. Pode-se, na democracia, ter liberdade absoluta de expressão? A professora da FGV Clarissa Gross volta à carga, na Folha, para afirmar que, ao dizer que vai “fuzilar a petralhada”, Bolsonaro não faz discurso de ódio. É só uma fala “tosca” (sic).

Permitimo-nos discordar. No Brasil há interessante bibliografia que bem trabalha essa diferença entre discursos de ódio e discursos “toscos”. Um bom exemplo é a obra do professor Marcelo Cattoni, analisando o famoso caso em que Ellwanger publicou discursos de ódio contra judeus, negando o holocausto. Teria Ellwanger feito apenas discursos “toscos”? O STF disse que não.

Na verdade, não há discursos. Há atos de fala. Pelos quais, como diz John Austin, fazemos coisas com palavras. E não se diga que a questão é de contexto ou que depende da relação falante-ouvinte. Ora, há caso em que o ouvinte nem pode contraditar.

O ouvinte pode “escolher”? O falante só “relata” (sentido de ato de fala de Austin) ou já levanta a pretensão de como o “mundo” deve ser (dimensão ilocucionária)? E o que é “perigo provável”? Se cabe averiguar quais “falantes” podem realmente produzir “dano”, já admitiremos, no mínimo, que “falas” são ações!

Perguntamos: historicamente, quem tem arcado com o “custo” da liberdade de expressão, em meio ao excesso autoritário de liberalismo complacente com a violência? Perigosamente, a abertura ultraliberal da fala da professora pode cair em uma “contradição performativa”, defendendo que haveria uma liberdade de expressão para segregar, silenciar e mesmo para negar a própria história. Ela não faz isso. Porém, enquadrar o ato de fala de Bolsonaro em “uma tosquidade” aponta para essa fronteira tênue.

Essa visão ultraliberal de liberdade de expressão é a que leva, inclusive, os Estados Unidos a irem contra uma série de iniciativas internacionais, colocando-se na companhia de reconhecidas ditaduras, diferentemente de todas as demais democracias ocidentais.


Estariam os EUA certos por isso? Ou corretos estão, diferentemente, o Supremo Tribunal Federal brasileiro ou a Corte Constitucional Federal alemã por considerarem que somos responsáveis pelo exercício da liberdade de expressão, sobre o pano de fundo de todas as disputas travadas pelo constitucionalismo que, inclusive, reconhece, como aprendizado histórico, o risco de pretensões abusivas e de suas consequências concretas ?

Onde estão os “alvos” preferenciais dos discursos de ódio? Nas minorias sociais e nos grupos mais vulneráveis!

No Brasil, sempre se quer imitar os Estados Unidos. Preferimos falar do Brasil, com nossas circunstâncias e singularidades. Por aqui, em nome da democracia, defendem-se atos de fala como “temos de cortar cabeças de ministros” e “vamos fuzilar”, para dizer o menos. Em nome da liberdade, admite-se um haraquiri institucional. Bom, com esse tipo de liberdade, chegamos aonde chegamos.

No fundo, a questão é hermenêutica e, por isso, profundamente política. Não podemos correr o risco de interpretarmos o Direito de modo kantianamente ingênuo. Como se a aplicação do Direito e mesmo da moral não devesse levar a sério a historicidade.

Assim como não podemos gritar “fogo” em meio a um teatro lotado (para usar o clássico exemplo), também um presidente da República não pode dizer que vai “fuzilar” seus adversários, usando de “lambuja” um adjetivo bem perlocucionário como “petralhada”.

Como fazer coisas com palavras?, perguntava John Austin.

Hoje, perguntemos ao presidente.

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