

Opinião
Musk, o absolutista
Uma informação ao bilionário: só existe liberdade de expressão sem limites quando ela é privilégio e não direito


Elon Musk, dono do antigo Twitter, atual X, autointitulado “absolutista da livre expressão”, atiçou os adeptos do bolsonarismo ao realizar, recentemente, descabidas críticas ao Supremo Tribunal Federal e, em especial, ao ministro Alexandre de Moraes.
A primeira questão que se coloca é que não há direito absoluto, nem mesmo à livre expressão. Salvo, possivelmente, dois direitos – o de não ser escravizado e o de não ser torturado – inexistem direitos ilimitados.
Os direitos, na modernidade, ganharam uma pretensão de universalidade. Ou seja, o arranjo jurídico foi estruturado de modo que o exercício dos direitos ocorra por todos, indistintamente. E, na medida que devem ser exercidos por todos, o gozo de prerrogativas deve ser ajustado de modo que um não invada o direito do outro.
Só existe liberdade de expressão sem limites quando ela é privilégio e não direito. Para usar a expressão de John Locke, liberdade é o direito que alguém possui sobre seu corpo e não o domínio sobre o corpo do outro. Na medida em que eu tenho domínio sobre o meu corpo e sobre o corpo do outro, o direito deixa de existir, dando espaço para a noção de privilégio.
A liberdade de expressão ilimitada carrega em si uma ideia de força. Será livre para exprimi-la e exercê-la aquele que detém mais força para impô-la. Quando não há limites, a livre expressão suprime a dos outros.
Essa livre expressão absoluta possui uma ideologia. Trata-se de uma ideia de elite natural, bem como de que existem, na sociedade, indivíduos dotados naturalmente de maior capacidade para decidir. Contemporaneamente, uma detenção de riqueza material implicaria uma suposta qualidade moral e política maior. Consequentemente, a esses seria atribuída, em razão desses supostos atributos, a ilimitada condição de exprimir, em nome da liberdade de expressão, tudo aquilo que entender. Musk, portanto, se colocaria, nessa perspectiva, numa condição de efetivamente um absolutista da liberdade de expressão.
O bilionário nos faz rememorar, ainda, que é preciso refutar o senso comum de que, nos Estados Unidos, a tutela jurídica da liberdade de expressão estaria isenta de críticas. Entretanto, destaque-se, por exemplo, a possibilidade, admitida pelo direito norte-americano, de que um juiz possa deter, por 18 meses, um jornalista que supostamente venha a atingir a dignidade da jurisdição. No Brasil, por outro lado, há muito mais tolerância ao jornalismo crítico e investigativo em relação à jurisdição do que lá. Aqui nenhum jornalista corre o risco de, no livre exercício da atividade jornalística, vir a ser detido nessas mesmas circunstâncias.
O poder político e a livre expressão vivem em constante tensão. Historicamente, um dos grandes problemas da democracia está nos discursos que se utilizam das deficiências da democracia constitucional para criticá-la e destruí-la, e não para melhorá-la ou reformá-la. A democracia é, obviamente, um sistema imperfeito e em constante aprimoramento. Democracia é o sistema do corpo, não é o sistema do espírito, da alma perfeita. Ela é um sistema com pecados, problemas e deficiências. A democracia pressupõe uma sociedade partida, como nós somos partidos, frágeis. Partida em interesses, partida no conflito social. É a partir do reconhecimento da sua própria imperfeição e incompletude que a democracia propõe um mecanismo para poder resolver isso de forma pacífica, pelo diálogo, pela disputa regulada.
Nessas bases, devemos realizar a crítica da crítica. Qual a intenção da crítica? De onde ela vem? De que lugar ela vem? Se a crítica se insurge sobre a relação de representação com a função de destruir a própria democracia e os direitos, ela deve ser rechaçada. É absolutamente necessária a defesa da democracia. O Supremo Tribunal Federal merece, sem favor algum, o reconhecimento do seu invulgar papel na defesa da nossa democracia. Tentativas de deslegitimá-lo não podem, de modo algum, comprometer o compromisso irrenunciável e incondicional com os direitos.
Para quem adota uma ideologia de defesa da democracia constitucional, só interessam as críticas para melhorá-la e aperfeiçoá-la. Não nos interessam as críticas destrutivas de direitos. Vivemos a experiência do nazismo e do fascismo. Vivemos no Brasil a experiência da ditadura. Críticas dessa natureza só trazem tragédia, dor e sofrimento para a imensa maioria dos cidadãos. •
Publicado na edição n° 1309 de CartaCapital, em 08 de maio de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Musk, o absolutista’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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