Luana Tolentino

[email protected]

Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

Muniz Sodré e o furto da bicicleta no Leblon

A forma social escravista confere aos brancos a liberdade de acusar e punir, como em um verdadeiro tribunal

Créditos: Reprodução Créditos: Reprodução
Apoie Siga-nos no

Desde o início do ano, as falas, os escritos do jornalista e sociólogo Muniz Sodré têm permeado o meu pensamento de uma forma muito intensa. É bem verdade que é uma tarefa praticamente impossível, mas o meu encantamento é tamanho que sinto vontade de desbravar os mais de 40 livros que o professor da UFRJ e ativista do Movimento Negro escreveu.

Na quinta-feira, Muniz Sodré, que há quatro décadas tem se dedicado a pesquisas sobre cultura e relações raciais no Brasil, participou da live de lançamento de Uma história feita por mãos negras: Beatriz Nascimento, livro organizado pelo geógrafo Alex Ratts. A obra reúne textos da historiadora Beatriz Nascimento, autora de contribuições inenarráveis para os estudos a respeito do racismo, da condição feminina negra e dos quilombos.

Beatriz foi orientanda de Sodré no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFRJ. Ela não chegou a concluir o mestrado, pois no dia 31 de janeiro de 1995, foi vítima de feminicídio ao tentar defender uma amiga que sofria violência doméstica.

Além de falar do convívio, da personalidade forte e do brilhantismo de Beatriz Nascimento, Muniz Sodré teceu comentários contundentes sobre a incidência do racismo no país. Em dado momento da live, o comunicólogo deu uma verdadeira aula ao dizer: “Nós não temos mais a sociedade escravista no Brasil. A abolição acabou com isso. Nós temos a forma social escravista, que talvez seja pior do que a sociedade escravista. Bem mais difícil de combater”.

Com essas palavras, Muniz Sodré nos ajuda a entender o caso de racismo mais comentado da semana. Morador da favela da Maré, o professor de surfe Matheus Ribeiro foi acusado por um casal de ter furtado a bicicleta elétrica que lhe pertence. O episódio ocorreu em uma rua do Leblon, bairro que por muitos anos serviu de cenário para os núcleos ricos das novelas de Manoel Carlos.

Foi justamente a forma social escravista, pilar da sociedade brasileira, que mediou a acusação. No pensamento de Tomás Oliveira e de Mariana Spinelli, dona da bicicleta que foi furtada, a presença de um negro em um dos metros quadrados mais caros do país, portando um objeto avaliado em mais de R$ 3 mil, já o coloca em estado de suspeição, pois a expectativa que se tem em relação a pessoas como Matheus Ribeiro é a pobreza, a subserviência e a marginalidade. Como bem colocou Marcos Nogueira, colunista da Folha, se Matheus estivesse com uma mochila térmica de aplicativos de entrega, provavelmente não teria sido visto como principal suspeito do crime.

A forma social escravista que orienta a maneira de agir e pensar dos brasileiros é cruel, perversa, uma vez que naturaliza a condição de exclusão em que vive a maior parte da população negra. Ela segrega e humilha sem qualquer tipo de culpa ou pudor. Dos negros é roubado o direito de ser e existir. É negado o direito básico de ir e vir, de adquirir bens e propriedades como qualquer outro cidadão.

A forma social escravista confere aos brancos a liberdade de acusar e punir, como em um verdadeiro tribunal, sequestrando dos negros possibilidades de defesa. No vídeo que mostra a abordagem do casal de namorados a Matheus, eles se sentem autorizados a dizer sem qualquer prova: “Acabou de roubar, a bicicleta dela é igualzinha!”. Mais do que isso: diante da negativa do instrutor de surfe, o rapaz branco toca o bem que foi comprado por Matheus honestamente para conferir se a chave que tinha em mãos abriria o cadeado.

Matheus precisou mostrar fotos dele com a bicicleta para provar sua inocência. Nesse tribunal inquisitório, que remete ao período anterior à abolição da escravatura, negros têm sido levados a prisões injustamente. De acordo com dados da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, em 2019, do total de casos em que houve prisões injustas, 70% das vítimas eram afrodescendentes.

Na noite de ontem, o suspeito de furtar a bicicleta foi identificado. Trata-se de Igor Pinheiro, de 22 anos. O rapaz, conhecido como “Lorão”, possui 28 passagens pela polícia, tendo sido preso sete vezes. Como bem elucida o caso, a forma social escravista de ver a vida e o mundo confere aos indivíduos de pele clara a presunção de inocência. Quem iria duvidar de um jovem morador de Botafogo, bairro da Zona Sul do Rio?

Fica uma pergunta: como combater essa forma social escravista, que aliena, violenta, exclui, segrega e garante privilégios aos brancos? Muniz Sodré já disse que é algo muito difícil. Torço para que, em seus livros e lives, ele possa nos ajudar com essa resposta.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo