Yasmin Morais

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Escritora, jornalista em formação pela Universidade Federal da Bahia com mobilidade acadêmica na Université Toulouse 2 Jean Jaurès, integrante do Centro de Estudo e Pesquisa em Análise do Discurso e Mídia (CEPAD) da UFBA e fundadora do projeto Vulva Negra.

Opinião

‘Mulheres são vermelhos’: A influência de Rita Lee na aura feminina brasileira

A irreverência de Rita me fazia degustar uma liberdade que como mulher e negra, poucas vezes me chegou aos lábios

A cantora Rita Lee em 2012. Foto: Marcos MAZINI/Globo TV/AFP
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No dia 09 de maio, um cometa com brilho de estrela cadente completou o seu ciclo sobre o céu, deixando um rastro de gloriosas lembranças e contribuições incomparáveis para a música e a aura feminina brasileira.

Esse cometa vermelho, vívido e de uma intensidade radiante, iluminou os caminhos das mulheres em épocas nas quais os caretas ditavam com mãos de ferro quais seriam os espaços nos quais poderíamos permanecer e transitar.

Num contexto no qual o feminismo ganhava formas coloridas na latinoamérica, esse astro feminino e irreverente não se ateve a teorias, mas sim à experimentação destemida de tudo aquilo que desejava e se autorizava a ser. Rita Lee, o cometa vermelho.

Fui envolvida por sua luminosidade ainda aos onze anos, como um presságio da irreverência adolescente que me aguardava nos anos seguintes. Rita apontava seus acordes e sua voz de veludo ao mundo de liberdade que eu ansiava conhecer, por detrás das capas dos livros e dos lápis-de-olho tímidos. Eu, diferente de Rita, fui uma garota boazinha, chatinha, mas que continha em seu ser uma Ovelha Negra em potencial, pronta para se libertar, ainda que apenas através do contato com a sua arte musical.

O vermelho lustroso de seus cabelos me remetia ao perigo do pecado original, ao gozo feminino, às aventuras de um mundo Rock’n’Roll e à liberdade de quem decididamente abocanhou a maçã. Afinal, como dizia Melanie Klein, quem come do fruto do conhecimento, é sempre expulso de algum paraíso. Rita foi expulsa de todos, apenas para construir as suas próprias formas de Paraíso.

Sereia, vampira, morta-viva, Eva ou Hera Venenosa, Rita carregou consigo a insubmissão que apenas uma mulher poderia trazer, e desafiava os conceitos de uma sociedade que reprimia o feminino materializado no mundo, mas também tudo aquilo que pudesse remeter à força das mulheres. Nunca me esqueço de uma das suas publicações, na época em que a artista movimentava a Web com suas redes sociais, “Xereca’s Day! Não viemos da costela do macho, somos filhas da Deusa-Mãe do universo”.

A irreverência de Rita me fazia degustar uma liberdade que como mulher e negra, poucas vezes me chegou aos lábios. Tantas de nós ainda vivem amordaçadas, escreveu-me uma seguidora numa rede social. Rita, em contrapartida, arrancou suas amarras como pôde, ainda que houvesse caído na teia de algumas aranhas. Suas canções versavam nas dobras do silêncio de uma mulher, impulsionando diversas de nós, de lábios e vulvas e almas, a gozar no final. Nos tornamos imortais em cada uma das suas letras, conduzidas na sua cauda de cometa pelo céu afora.

A menina boazinha, chatinha que fui, foi abraçada por suas canções estonteantes e pelo amor ao tal de Roque Enrow, namorado que eu, ela e tantas de nós tivemos em comum. A sua figura teve notável influência nos ideais de liberdade feminina que norteiam a minha vida e o meu trabalho, me permitindo contactar a menina-mulher que fui e sou nesse continuum, nesse tempo alterado e nessas idas e vindas dos caretas sobre o solo brasileiro. O cometa vermelho rasgou os céus com a sua insubordinação política. Suas músicas, tão censuradas pela DCDP na Ditadura Militar, são os hinos de uma geração que teve de encarar os seus próprios demônios e revisitar o combate contra a barbárie para avançar.

Como uma defensora da Liberdade, aquela mesma com L maiúsculo, Rita Lee nos recordava do quão importante é encarar a vida com o júbilo de uma adolescente que tudo descobre, mas com a lucidez de quem sabe que o curto período de tempo que temos deve ser desfrutado à máxima potência — ainda que a maior atitude Rock’n’Roll de todas possa ser cuidar de uma horta, cercada pelos bichos e seus filhos, o seu amor.

O poema da escritora Nathália Gouveia, que transcreve uma das formas mais viscerais e mais Rita de ser e estar como uma mulher neste mundo, diz categoricamente que “mulheres são vermelhos”, a cor intensa e devoradora. Pulsante e irreverente. A cor da sua cabeleira, da sua cauda de cometa.


“Mulheres são vermelhos.

Para os olhos mais frágeis, 

Chega a ser irritante vê-las

Brilhando mesmo que em detalhes

Então são consideradas vulgares

E não cabem em todas as ocasiões

Seu significado é reduzido

É associado apenas às paixões

Quando, em verdade,

Mulher e vermelho

São carne viva,

São fomes

Insuportavelmente vibrantes,

Doloridas, ardentes?

Não, ardidas

Assim como um corte na gengiva

Pimenta

Na ferida

Aberta.

Arderemos vossos olhos.

Rita Lee Jones é o vermelho.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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