Carla Jimenez

Jornalista há mais de 30 anos, foi diretora e editora chefa do EL PAÍS no Brasil e co-fundou o portal Sumaúma

Opinião

Mourão, Milei e os viúvos da ditadura na América Latina

Brasil, Chile e Argentina encaram seus demônios diante de uma geração que teima em reconhecer o passado

Da esquerda para a direita: Hamilton Mourão, Jair Bolsonaro, José Antonio Kast e Javier Militei
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Chegamos ao nosso 7 de Setembro ainda sob o eco das celebrações dos anos anteriores, quando convivemos com ameaças de golpe vindas do governo derrotado nas urnas em 2022. O Dia da Independência nunca foi palco de grande entusiasmo brasileiro — diferentemente de outros países, que o celebram com fervor. É o caso do 4 de Julho nos Estados Unidos, ou o 18 de Setembro, no Chile.

Até pouco tempo, o 7 de Setembro era uma data burocrática, mais lembrada por ser um feriado, do que pela data em si. Quiçá porque a emoção popular da nossa data tenha mais a ver com a independência de D. Pedro I em relação a seu pai, o rei João VI, e à coroa portuguesa, do que com um apelo do povo. Naquele tempo, o país tinha menos de 5 milhões de pessoas, um terço delas eram negros escravizados, 800.000 indígenas, e 90% de analfabetos. Dançava-se conforme a música.

O dia ganhou novos contornos com os anos bolsonaristas. O 7 de Setembro foi capturado pelos patriotas, dispostos a tudo para fazer valer seus bordões enviesados a respeito da nação. Até mesmo invadir a Praça dos Três Poderes e exigir o fechamento do Judiciário. Chegamos assim, depois de 201 anos da independência anunciada por D. Pedro, com o noticiário falando mais do 7 de Setembro sobre as ameaças de remanescentes golpistas do governo anterior.

Muitos dos que estão adotando a data da independência para pelejas políticas são viúvos do golpe de Estado que não houve. Vociferam publicamente um sentimento de traição por quem não apoiou o plano do ex-presidente Jair Bolsonaro. Que o diga o atual senador Hamilton Mourão, general de reserva e ex-vice do governo bolsonarista. Basta ler os comentários de seguidores em suas redes sociais para ver o quanto Mourão se tornou mal amado por esses extremistas.

À medida que o tempo passa a história se dilui, sob o oportunismo dos golpistas que crescem diante das falhas da democracia

Maçom, Mourão encara até mesmo uma torcida pela sua expulsão dentro da maçonaria por supostamente ser um “covarde traidor da pátria”, como se lê em mensagens trocadas por whatsapp entre integrantes da ordem. O general da reserva goza hoje de um mandato que a democracia lhe garantiu por 8 anos.

A Argentina não teve um Jair na presidência, mas pode vir a tê-lo com Javier Milei. O candidato já deixou clara sua plataforma extremista, com a dolarização da economia e o fim do Banco Central. Sua vice, Victoria Villarruel, aproveita o momento para começar uma campanha pelos que ela chama de as “outras vítimas” apagadas pela história daquele país: os militares que faziam parte do regime ditatorial, assassinados em embates com quem protestava contra os fardados. Uma comparação covarde em um país que teve uma das ditaduras mais cruéis no continente, com mais de 30.000 pessoas assassinadas a sangue frio. Villarruel tem apoio dos viúvos da ditadura argentina, e toca numa ferida que estava fechada há décadas.

No Chile, às vésperas de celebrar os 50 anos do golpe de Estado de Augusto Pinochet, também há fricções com a extrema direita diante da data tão simbólica. Embora os chilenos, assim como os argentinos, tenham levado seus generais para o banco dos réus quando a democracia foi restabelecida, eles também vivenciam a falta de consenso sobre a ditadura militar. O presidente Gabriel Boric encarna o Chile democrático e progressista, mas precisa lidar com uma extrema direita que nunca aceitou a condenação veemente de seu passado. Boric venceu a eleição com quase 56% no final de 2021, enquanto o pinochetista José Antonio Kast obteve 44% dos votos.

Kast conseguiu dar o troco no ano seguinte, com o fracasso da assembleia Constituinte, que está reescrevendo a Constituição deixada de herança pelo ditador Augusto Pinochet. A primeira versão da nova Carta Magna foi rejeitada em 2022, e foi preciso eleger uma nova Constituinte. O partido de Kast, o Republicano, ganhou musculatura contra Boric ao obter 23 das 51 cadeiras dessa nova assembleia.

Chile, Brasil e Argentina se veem, hoje, diante do desafio de construir um futuro sem esquecer seu passado. O problema é que à medida que o tempo passa a história se dilui, sob o oportunismo dos golpistas que crescem diante das falhas da democracia. Javier Milei, por exemplo, cresceu com a incompetência do país para lidar com a inflação.  Jair também foi um efeito colateral da miopia da esquerda e da fragmentação da classe política que embarcou na Lava Jato.

O sociólogo Ricardo Azevedo, que viveu no Chile e na Argentina nos anos 1970, vê também um ponto em comum entre os três países. Todos foram contagiados de alguma forma pela onda de extrema direita que invadiu o mundo na última década. “No plano ideológico, após a derrota do comunismo e da social-democracia, o neoliberalismo venceu”, diz ele, que foi preso pelos militares durante a ditadura. Seguiu para o Chile onde também chegou a ser detido no Estádio Nacional, até seguir para a França, onde concluiu seus estudos.

Junto com alguns amigos, Azevedo fundou informalmente o grupo Viva Chile, de brasileiros que viveram o golpe de Estado de Pinochet. Estarão no dia 11 de setembro em Santiago para assistir às celebrações sobre a data. Sabe-se que Boric e Kast estarão em lados opostos para se referir à data.

É difícil entender a viuvez da ditadura de quem nem mesmo era nascido nessa época. Quiçá porque era um tempo em que não haviam instrumentos como as redes sociais, que deram mais voz a quem não tinha espaço, e um holofote para desmascarar falsos cristãos. Nos tempos atuais, a opressão foi sofisticada, sob um projeto de aparente democracia, e com ajuda das mesmas redes sociais, e de pastores que evocam a Deus e às armas na mesma oração.

São tempos de reflexão. Num momento em que lulistas se tornam agressivos com quem se manifesta publicamente pela indicação de uma mulher negra para o Supremo Tribunal Federal, vale lembrar que o jogo da democracia está longe, muito longe de ser vencido. Perdemos o vigor de lutar por pautas caras e de enfrentar o falso pudor que tomou o país. Falar de política e de ditadura militar já não é fácil depois do bolsonarismo. Foi a armadilha que eles nos deixaram. E é essa mesma que é preciso desmontar em todo o continente.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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