Opinião

Mino Carta: Salve-se quem puder

Os 80 tiros disparados no Rio simbolizam à perfeição o cataclismo que varre o feroz manicômio chamado Brasil

Foto: Agência Brasil Foto: Agência Brasil
Apoie Siga-nos no

Diz Eduardo Bolsonaro, chanceler in pectore do papai Jair, que também os anjos carregam espadas e flechas porque sabem ser preciso andar armado. Estou no aguardo de que asas surjam espontaneamente dos ombros dos policiais nativos e dos milicianos cariocas, tão chegados à família do capitão, bem como dos militares prontos a disparar 80 balas contra um carro inofensivo, para matar um inocente e ferir mais dois.

O episódio é altamente representativo do alcance terrificante do cataclismo que se abate sobre todos nós, tenhamos ou não consciência da monstruosa intensidade do fenômeno gerado pela demência em estado puro transformada em forma de governo. O fato haveria de gerar, além do espanto geral, a pronta intervenção do presidente da República, do ministro da Justiça, do Supremo Tribunal Federal, do comandante do Exército, etc., etc. Estamos, porém, no país que elegeu Bolsonaro, inescapável resultado do golpe de 2016. E quem porta armas tem licença para matar. No fim do ano verificaremos que nossa guerra interna multiplicou brutalmente o balanço dos homicídios.

Aqueles que haveriam de condenar o acontecido apressam-se a tomar distância. As chamadas autoridades preferem deixar que a Justiça Militar apure e decida, graças à medida antidemocrática de Michel Temer ao lhe entregar poderes para tanto. O conge de dona Rosângela lamenta em entrevista na Bandeirantes, e confia no julgamento dos fardados pelos fardados. Enquanto isso, entrevistado pela Jovem Pan, o capitão que governa pela internet declara: “Quero explorar a Região Amazônica em parceria com os EUA”. Sublinha Guilherme Boulos de bate-pronto: “Ou seja, quer entregar a Amazônia como entregou a Base de Alcântara”. O jovem líder em quem vale a pena apostar clama contra o escândalo e propõe o indiciamento do capitão por crime de lesa-pátria.

Como encarar este Brasil passivo, inerte, insensível diante de sua própria desgraça? De certa maneira, tem o que merece. Em boa parte, receio, o que deseja. De resto, não há como escapar a uma triste consideração: o primeiro aniversário da prisão de Lula, único líder popular brasileiro de dimensão nacional, um ano de infâmia, passa quase despercebido, inclusive pelo próprio PT. CartaCapital continua a enxergar no Nordeste a terra prometida do retorno à saúde mental.

Dois aspectos da situação apontam para a sua imensa gravidade. De um lado, a vitória do avanço tecnológico que mais contribui para a imbecilização coletiva. Do outro, o nacional-entreguismo de um governo que depena progressivamente o País. De minha parte, digo alto e bom som, como os editoriais do velho Estadão, que não tenho celular e jamais me aproximei de um computador, na certeza de que me engoliria com sua bocarra escancarada. Certo é que engoliu o Brasil e foi instrumento fatal da eleição de Bolsonaro. Sempre convém evocar Umberto Eco, um pensador capaz de apontar como o avanço é, de verdade, o atraso, em primeiro lugar porque no espaço virtual todos podem proclamar besteiras inomináveis ou mentiras desbragadas para formar com êxito opinião pública. E, não esqueçamos, o Brasil é comprovadamente um dos países mais mal-ensinados do mundo.

O país da casa-grande e da senzala foi engolido pela internet, enquanto é depenado progressivamente

Bolsonaro, por exemplo, é um atilado usuário do instrumento, ignorante ele e ignorante a plateia, com satisfação recíproca. E vamos em frente, de velas cheias de vento, e a cabeça também. Na outra frente do desastre em progressão, os efeitos da prática desassombrada do nacional-entreguismo, que nada tem a ver com o neofascismo que alguns analistas brasileiros atribuíram ao capitão. Muitos, aliás, cuidam de perpetuar o engano, o qual, como tantos outros, se deve ao desconhecimento das coisas da história e do mundo. Teimamos estupidamente em medir as circunstâncias com um metro inadaptável ao Brasil medieval da casa-grande e da senzala. Deste ponto de vista, cabe acentuar a eficácia do desempenho dos lacaios de Washington, capitaneados por Sérgio Moro, o vilão-mor.

Os EUA apoderam-se do País entregue de graça, e com intenções bem mais profundas do que qualquer previsão pessimista. Não soa impossível o abastecimento de armas ao nosso Exército de ocupação para torná-lo apto à invasão da Venezuela e a funcionar como um cão de guarda no quintal de Tio Sam. Há razões para crer que a CIA já elabora planos para incentivar o nosso nacional-entreguismo. Atenção, contudo: o torquemadazinho curitibano não é candidato a um assento no STF, muito menos à chefia da Central de Inteligência, que frequenta com assiduidade, e sim à Presidência da República.

Está de pé a pergunta: Bolsonaro chega até o fim? Há óbvias dúvidas a respeito, mesmo porque, despida das benesses do apoio publicitário governista e outras mais ao sabor do toma lá dá cá, uma porção importante da mídia nativa assume uma posição, às vezes até irada, em relação ao capitão e o seu governo. Nada destinado, está claro, a abrandar o preconceito social e racial nutrido por ricos e aspirantes à riqueza, o ódio desvairado e visceral a uni-los contra a senzala e contra aqueles que apontam no insuportável desequilíbrio o maior problema do Brasil. Mas a vocação golpista permanece em todos os sentidos e patamares, donde, de improviso, pode alvejar o capitão, por ora protegido pela militarização do seu governo, conquanto ali more também o seu risco.

Impossível, de todo modo, imaginar por enquanto um desfecho positivo, o lado negro da força, diria George Lucas, está contra os cidadãos ainda habilitados a pensar e almejar um Brasil melhor. E a perceber a interferência do ridículo e do grotesco no desenvolvimento de um enredo de inaudita parvoíce. Temo que não sejam muitos, mas continuo a voltar meus olhos e minha esperança na direção do Nordeste.

Permito-me, ao cabo, citar o capitão, o novo ministro da Educação, Abraham Weintraub, e, dulcis in fundo, Sérgio Moro. “Queremos uma garotada que não se interesse por política”, diz Bolsonaro. E o ministro, abençoado por Olavo de Carvalho: “Em 1964, houve ruptura, mas dentro das regras”. Enfim, o conge de dona Rosângela usa a palavra rugas em lugar de rusgas. Eis um pessoal credenciado para educar o País.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo