Luana Tolentino

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Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

Meu cabelo não é bombril

Governos, faculdades e universidades têm falhado na formação de professores no que concerne a educação antirracista

Foto: iStock
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Muito se tem discutido a respeito da urgência de empreender práticas pedagógicas e institucionais antirracistas, capazes de pôr fim ao “apedrejamento moral” que crianças e jovens negros sofrem no ambiente escolar, conforme bem pontuou a pesquisadora Eliane Cavalleiro.

Graças, sobretudo, ao trabalho realizado por educadores, intelectuais e ativistas do Movimento Social Negro é possível afirmar que desde 2003, quando a Lei 10.639/03 tornou obrigatórios o resgate e o reconhecimento da importância da comunidade negra na construção do País, tivemos grandes avanços, mas ainda não foram suficientes para superar o racismo que se faz presente nos estabelecimentos de ensino.

Prova disso é o recente caso da professora da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) de Ribeirão das Neves/MG que, como parte das atividades do Dia da Consciência Negra, orientou os alunos a usarem esponjas de aço para representar o cabelo de pessoas negras.

Acompanhando toda a repercussão do episódio, que culminou com a demissão da docente, ficou evidente a falta de preparo dela para o trato da educação das relações étnico-raciais, principalmente em uma data tão cara ao povo negro. Na apresentação do livro Superando o racismo na escola, o professor Kabengele Munanga explica que a formação precária dos professores, somada ao mito da democracia racial, que ainda impede boa parte da população de perceber os tentáculos muitas vezes “sutis” do racismo, tem contribuído de maneira preponderante para o não enfrentamento da discriminação racial nas escolas. Com isso, retira-se dos estudantes afro-brasileiros o direito de ingressar, permanecer e alcançar êxito na trajetória escolar.

Aqui, não pretendo sair em defesa da professora em questão. Como negra, conheço de perto a dor que é ter o cabelo chamado de bombril. Ao lado de “macaco/a” é um dos primeiros xingamentos que recebemos sempre que uma pessoa deseja ferir a nossa alma. Com este pequeno texto, busco caminhar em direção a uma reflexão que contribua para que episódios inaceitáveis como esse não ocorram novamente.

Na condição de docente da educação básica, infelizmente, já presenciei um cartaz em que uma colega de jornada também utilizou palha de aço com os mesmos fins da professora que virou notícia no Brasil inteiro. Obviamente, não usei o silêncio e a indiferença como estratégias, o que também contribui para a perpetuação do racismo, mas me insurgi e pedi que a “prática pedagógica” fosse repensada, pois não condizia com o 20 de Novembro.

Em seu livro Sem perder a raiz, Nilma Lino Gomes afirma que o cabelo é um componente importante no processo de construção da identidade negra, muitas vezes marcado pela violência e pela negação da pertença racial. De forma contínua, o cabelo crespo permanece sendo depreciado. Além de “bombril”, a ele são destinadas definições como “duro”, “palha de aço”, “assolan” e “arame farpado”, que revelam o racismo do qual os corpos negros são alvo.

Tais rótulos estão diretamente ligados à baixa autoestima apresentada por estudantes negros, o que causa sérios impactos na aprendizagem e na permanência destes na escola. Sendo assim, torna-se fundamental empreender práticas, ações e discursos de desconstrução de estereótipos, de modo que negros e negras tenham orgulho de suas origens étnicas.

Influenciadas pelo trabalho brilhante da educadora mineira Patrícia Santana, para enfrentar o racismo, em 2017, a professora Silvia Mascarenhas e eu organizamos o I Desfile do Cabelo Crespo e Cacheado na escola em que trabalhávamos. Posso afirmar que poucas atividades mobilizaram tanto a comunidade escolar.

Ao longo de uma semana, vi principalmente as alunas negras entusiasmadas com a ideia de exibir seus cabelos com orgulho. No dia tão esperado, tivemos uma manhã inesquecível. O desfile também reverberou nas famílias. De uma mãe emocionada ao ver a beleza da filha reconhecida e valorizada, ouvi: “Na minha época, não tinha essas coisas…”.

Em minha caminhada como formadora de docentes, venho ressaltando o quanto governos, faculdades e universidades têm falhado na formação inicial e continuada de professores no que concerne à implementação de uma educação antirracista. Ao mesmo tempo, tenho convocado professores e gestores a assumirem as responsabilidades que lhe cabem nesse processo. Quem cala consente.

Atualmente, encontra-se disponível toda uma gama de livros, pesquisas, vídeos, filmes e cursos para nos auxiliar na promoção de práticas educacionais comprometidas com a equidade racial, com a democracia, com a justiça, com o fim das agressões que têm os estudantes negros o alvo preferencial.

Não é mais possível conceber que episódios como o que motivou a escrita desse texto continuem acontecendo no interior das escolas. Estudar, pesquisar, refletir, interrogar o currículo e falas que entendemos como normais/naturais são atitudes que precisam ser tomadas. E tem que ser agora.

Meu cabelo não é bombril. Nosso cabelo não é bombril. Nosso cabelo é história, é ancestralidade, é lindo. Exigimos respeito.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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