A medida provisória 881, publicada em 30 de abril de 2019, “institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, estabelece garantias de livre mercado, análise de impacto regulatório, e dá outras providências” provando que, como nação, perdemos completamente a vergonha de desrespeitar a Constituição da República.
A MP foi apresentada pelo governo no dia 01 de maio, em ato claramente simbólico da forma como a memória da luta dos trabalhadores e trabalhadoras é tratada e considerada pelo atual governo.
A tal “Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, que estabelece normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica”, embora remeta aos termos do art. 170 e 174 da Constituição, nega o fato de que nossa ordem constitucional está pautada na dignidade da pessoa humana e nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, III e IV) e que tem por objetivo a construção de uma “sociedade livre, justa e solidária” e a erradicação da pobreza e da marginalização, além da redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3º).
Nada disso é compatível com uma suposta Declaração de direitos de liberdade econômica (Art. 3º) que determinam a observância do “disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição”, sem atentar para o fato de que o caput desse dispositivo constitucional estabelece que a própria ordem econômica deve ser estabelecida “conforme os ditames da justiça social”, assim como deve ter como objetivo “assegurar a todos existência digna”.
Em nossa Constituição, portanto, a ordem econômica se sujeita aos princípios da função social da propriedade; da defesa do consumidor, da defesa do meio ambiente, “inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação”; da redução das desigualdades e da busca do pleno emprego.
Já a medida provisória 881, cuja urgência e relevância para fins do artigo 62 da Constituição sequer vou referir, pois evidentemente ausente, fixa como “princípios que norteiam o disposto nesta Medida Provisória” (Art. 2º):
- – a presunção de liberdade no exercício de atividades econômicas;
- – a presunção de boa-fé do particular; e
- – a intervenção subsidiária, mínima e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas.
O texto é autoexplicativo. Os princípios ali elencados “norteiam a MP”, não a ordem jurídica, menos ainda a Constituição. E nem poderiam, pois como ordem de valores sociais, não foram eleitos pela sociedade nem se afinam com a previsão constitucional.
Ainda assim, a MP tem a pretensão estabelecer como devem ser aplicados/interpretados os diferentes ramos do direito (art. 1º).
Além da tentativa anacrônica de recuperação de uma retórica liberal já historicamente superada, a MP busca censurar movimentos de resistência, quando, em lugar de se preocupar com a proteção do meio ambiente no que tange à entrega de nossas reservas naturais, à destruição da floresta amazônica ou aos desastres recentemente provocados por falta de prevenção, refere que dentre as normas de proteção ao meio ambiente estão “incluídas as de combate à poluição sonora e à perturbação de sossego”.
Curiosamente, a MP estabelece como “direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País” (art. 3º, d) a legislação trabalhista, algo completamente desnecessário, pois os direitos de trabalhadoras e trabalhadores estão no rol dos direitos que são fundamento do Estado, no Título II de nossa Constituição.
Portanto, naquilo que não inova para tentar alterar a espinha dorsal da Constituição, quanto a uma ordem econômica que respeite a justiça social e tenha por finalidade reduzir desigualdades (o que necessariamente implica redistribuição de renda), a MP “chove no molhado”. E não é apenas ao referir que a legislação trabalhista é direito essencial para o desenvolvimento econômico. Presunção de boa-fé é preceito que consta tanto em nossa Constituição quanto no Código Civil, de modo expresso. A preservação da autonomia da vontade também, aliás, como refere a MP, “exceto se houver expressa disposição legal em contrário”, o que ocorre em relação aos direitos fundamentais trabalhistas, notadamente através das disposições dos artigos 9o, 444 e 468 da CLT.
A ode a uma livre iniciativa não mediada pelo Estado[1] é igualmente redundante naquilo em que repete o que já há no ordenamento jurídico e, ao mesmo tempo, inviável naquilo em que pretende confrontá-lo, dando a ideia de que retornamos ao Século XVIII.
A própria MP mostra sua inutilidade ao ressalvar, no § 4º do mesmo artigo, “situações em que o preço de produtos e de serviços seja utilizado com a finalidade de reduzir o valor do tributo, de postergar a sua arrecadação ou de remeter lucros em forma de custos ao exterior” ou que firam a “legislação da defesa da concorrência, aos direitos do consumidor e às demais disposições protegidas por lei” . Ou seja, resta tudo como já estabelecido no ordenamento jurídico.
A esquizofrenia da medida vem exposta em seu art. 4º. Após exaltar a liberdade econômica irrestrita, refere ser dever da administração pública, entre outras coisas, “redigir enunciados que impeçam a entrada de novos competidores nacionais ou estrangeiros no mercado”; “criar privilégio exclusivo para determinado segmento econômico, que não seja acessível aos demais segmentos”; “aumentar os custos de transação sem demonstração de benefícios”; “introduzir limites à livre formação de sociedades empresariais ou de atividades econômicas” e “restringir o uso e o exercício da publicidade e propaganda sobre um setor econômico”. Em lugar da liberdade, ampla intromissão do Estado na economia.
Até o art. 7º, a MP 881 não passa de um conjunto confuso de disposições genéricas e contraditórias.
Mas aí vem a cereja do bolo…
A alteração do artigo 50 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil, que trata da desconsideração da personalidade jurídica. A redação original (que já aparece riscada em consulta ao texto legal, no Google) dispõe: “Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”.
Pelo texto da MP, acrescenta-se ao caput a necessidade de que os administradores ou sócios sejam “beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso” e a determinação de que o “desvio de finalidade” passa a ser definido como “a utilização dolosa da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza”. Estabelece requisitos para a confusão patrimonial (§ 2º) e submete o reconhecimento da existência de grupo econômico a esses requisitos (§ 4º).
Altera também os artigos 423 e 421, este último para pretensamente submeter a função social do contrato, à observância do o disposto “na Declaração de Direitos de Liberdade Econômica” e estabelece, em um parágrafo único, que “Nas relações contratuais privadas, prevalecerá o princípio da intervenção mínima do Estado, por qualquer dos seus poderes, e a revisão contratual determinada de forma externa às partes será excepcional”[2].
A MP também inclui no Código Civil um Capítulo sobre Fundo de Investimento, buscando preparar o terreno para o desmanche da previdência contido na PEC 06. Por fim, altera vários dispositivos de leis relacionadas a investimentos, em clara postura de proteção ao patrimônio de quem tem condições em atuar com capital financeiro.
Se estivéssemos em um período de normalidade, a MP 881 não passaria de uma piada de mau gosto.
Não é esse o caso. Sabemos que já há algum tempo a máscara que nos convence de que o Estado e o Direito são agentes neutros criados para promover a igualdade e acabar com a dominação caiu. Desde então, a lógica de que as regras valem apenas quando interessa torna-se ainda mais evidente.
A MP, que desafia a Constituição, em um contexto de exceção como o que estamos vivendo, não é apenas de péssimo gosto e má qualidade técnica. É também um manifesto. Um alerta grave sobre o retorno à lógica do livre mercado, em que a miséria não deve ser combatida, mas estimulada como elemento da reafirmação da sujeição da “livre vontade” ao capital.
O que mais precisamos para compreender o que está acontecendo em nosso país: que se oficializem campos de concentração?
Foto: Evaristo Sá/AFP
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