Raisa D. Ribeiro

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Professora universitária (UNIRIO) e advogada feminista, doutoranda em Direito (UFRJ), mestra em Direito Constitucional (UFF) e especializada em Direitos Humanos (Universidade de Coimbra - Portugal), pesquisadora e coordenadora do projeto Feminismo Literário.

Opinião

Me chama de Bruna: o prazer é todo meu

Série disponível na Amazon Prime aprofunda reflexões sobre prostituição

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Nem toda série que aborda a prostituição e a pornografia é hard assistir. Exemplo disso é a série exclusiva da Amazon Prime, “Me chama de Bruna”, que contextualiza, de forma bastante realista, a vida das trabalhadoras sexuais no Brasil, trazendo o sexo como protagonista de seus enredos. Dividida em 4 temporadas, cada uma com 8 episódios cada, com média de 40 minutos de duração, a série é inspirada na história da Bruna Surfistinha (Raquel Pacheco), (ex)prostituta conhecida por sua atuação pública nas redes sociais.

Com o jargão, “meu nome agora é Bruna e eu faço o que você quiser: oral, vaginal e anal”, a protagonista narra, dialogando com as câmeras, o início de sua jornada na prostituição em um bordel, quando ainda era menor de idade, até a sua ascensão aos programas de luxo.

Interpretada por Maria Bopp de modo magistral a série dialoga com o telespectador, na abertura e ao final de cada episódio, em uma inteligente referência ao cenário das camgirls. Os episódios mostram o ingresso da Bruna na prostituição, explorando diversos elementos relacionados a temática, tais como: a discrepante realidade entre as mulheres que estão na prostituição por necessidade financeira daquelas que a buscam por outros motivos; o envolvimento da polícia e das instituições na manutenção das casas de prostituição (consideradas ilegais em nosso país); algumas das violências sofridas pelas prostitutas em seus ambientes de trabalho; e a associação da internet à prostituição.

O binômio rivalidade feminina-sororidade é bem explorado ao longo da série, quando, por exemplo, as prostitutas veteranas do bordel se sentem ameaçadas com a chegada de Bruna, como se ‘a carne nova do pedaço’ estivesse competindo a atenção masculina com elas. Mas a sororidade também se fez presente, a exemplo de quando Bruna socorre Jéssica (Nash Laila), vítima de um autoaborto malsucedido, que até então se portava como inimiga da protagonista. Solidariedade política entre as mulheres, o reconhecimento positivo de nossas experiências e compaixão compartilhada em casos de sofrimento comum[1]: Bruna nos proporcionou ver isso aqui.

 

A criminalização da prostituição e do seu entorno perpetua o estigma de prostituta. Puta é pejorativo. “Filha da puta” é um xingamento. Ninguém quer ser puta, ninguém quer ser chamada de puta ou se identificada como uma. A série retrata isso em diversos momentos, por exemplo, após uma reunião de colégio, quando perguntado às personagens Jéssica e Bruna suas profissões elas fogem do tema e dizem já terem feito de tudo nessa vida, tentando se esquivar de contar que eram prostitutas para os pais dos colegas da escola de sua filha e afilhada, respectivamente.

A série desafia a premissa “puta não pode ser estuprada”.

Ora, na visão do patriarcado, se a puta transa em troca de dinheiro, basta o estuprador pagá-la, para o ato se tornar legal. Isso é ilustrado em algumas passagens, sendo uma delas quando Nanci (interpretada de maneira brilhante pela Susanna Krugger) é forçada, por um cliente, a fazer sexo sem preservativo. A cena do estupro é forte. Quando ela vai ao IML, é atendida com desdém e chega a dizer “eu sei o que você está pensando, puta não pode ser estuprada, não é mesmo?”.  O mesmo foi dito à Bruna por seu cliente, que depois de dopá-la, sequestrá-la e violentá-la, tendo com ela relações sexuais não consentidas, a liberta, deixando o dinheiro do programa externo (realizado fora do flat).

Se refletirmos ainda mais criticamente, a afirmação de Catharine MacKinnon[2] de que “a prostituição é estupro pago” se aplica perfeitamente em alguns momentos. Por exemplo, Bruna, ao se ver encurralada para pagar uma dívida para liberar sua melhor amiga, se submete a transar com três conhecidos, antigos colegas de colégio, que a odeiam, em troca de dinheiro. Aquelas relações sexuais são indesejadas por ela, mas o dinheiro torna isso possível, viável. Ao final do programa, Bruna grita e limpa a boca, demonstrando nitidamente que se sente violada – mas foi paga para isso. Se o estupro é definido pela nossa legislação penal como “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”, como pode o dinheiro tornar inexistente a violência desta situação?

A pornografia também é pontualmente abordada em alguns momentos da série, mas qual seria a real diferença entre a pornografia e a prostituição? MacKinnon argumenta que uma sustenta a outra, que elas se relacionam[3]. Na primeira temporada, Bruna é submetida a violências em um programa, no qual o cliente grava todo o ocorrido. Em determinado momento, depois de tanto insistir para não continuar com o programa, Bruna consegue se desvencilhar e pega a câmera para deletar o filme, que registrava as violências. Ocorre que seu então namorado, ao ampará-la, diz ter apagado a gravação, mas escondido, vende as imagens para um outro bordel, sem a sua autorização. O mesmo acontece na terceira temporada, dessa vez com Georgette, que tem a relação sexual gravada de forma clandestina por um cliente.

O passado da protagonista começa a ser revelado, demonstrando a conexão entre os assédios sofridos no colégio com a sua decisão de ingressar na prostituição.  Ao mesmo tempo em que se aborda a realidade da prostituição de luxo, vivida por Bruna, a série continua retratando a realidade da prostituição barata, das comunidades, periferias e favelas, bem como seus entrelaces com o tráfico de mulheres.

A vulnerabilidade e a falta de proteção das prostitutas são abordadas em diversos outros momentos, com, por exemplo, situações de pagamentos incompletos ou não realizados, clientes agressivos, propostas e tentativas de sexo inseguro, exposição a pornografia de revanche.

Na última temporada, Bruna que se vê envolvida e busca desarticular uma rede de exploração sexual de crianças sustentada por autoridades públicas de alto escalão. É nesse mesmo momento que Bruna, já inserida na alta sociedade, se depara com o impacto de sua atuação nas redes sociais, como influenciadora, na construção do imaginário de jovens meninas (pobres) quanto ao “glamour” da prostituição de luxo.

Se de um lado, Bruna, ao se prostituir, não combateu o patriarcado – mas reforçou a estrutura que vê a mulher como mercadoria, como objeto sexual servível a sexualidade masculina -, de outro, ela o fez com outras formas, ajudando e acolhendo outras mulheres em situações de sofrimento, por exemplo. Quem somos nós para julgarmos as escolhas alheias?

A prostituição e a pornografia ainda são temas tabu em nossa sociedade. Preferimos mascará-las, escondê-las, tampar os olhos fingindo que não existem, que não possuem impactos na construção da nossa realidade social e que não precisam ser enfrentados. Séries, com abordagens sérias como essa, abrem caminho para o debate. Vale a pena pelo entretenimento, vale a pena pela produção, roteiro e atuação, vale a pena pelas reflexões.


[1] Sobre a sororidade e outras demandas feministas, fica a indicação do livro: RIBEIRO, Raisa D. Feminismos: o que as feministas querem? Amazon E-books, Feminismo Literário, 2021.

[2] Catharine MacKinnon, professora de direito da Universidade de Direito de Michigan e professora visitante de direito da Escola de Direito de Harvard, é um nome expoente no movimento de abolição da pornografia e proteção dos direitos civis das mulheres que se encontravam em situação de violência em razão da pornografia no ordenamento jurídico estadunidense. Essa pensadora foi uma das teóricas feministas com maior impacto prático nas últimas décadas nos EUA: mobilizou muitas pessoas, principalmente mulheres, além de órgãos legislativos, judiciais, chamando atenção para as questões de gênero e sendo responsável pelo reconhecimento jurídico da questão do assédio sexual em seu país e da pornografia como uma das formas de violação dos direitos civis das mulheres. De 2008 a 2012, atuou como primeira assessora especial de gênero para o promotor do Tribunal Penal Internacional (Haia), sendo responsável pela implementação do conceito de “crime de gênero”. A teoria de MacKinnon sobre as relações assimétricas de poder entre homens e mulheres no ambiente de trabalho, desenvolvida em seu livro Sexual harassment of working women (1979) impulsionou a mudança de posição da Suprema Corte dos Estados Unidos acerca dos casos de assédio sexual – precedente Meritor Savings FSB v. Vinson, 477 U.S (1986). Com relação à pornografia, apesar de as propostas legislativas elaboradas em conjunto com Andrea Dworkin terem sido rejeitadas nos EUA, a sua teoria influenciou em mudanças jurídicas no tema realizadas pela Suprema Corte do Canadá no ano de 1992.

[3] MACKINNON, Catharine. Pornografia como Tráfico. Tradução de CAMPOS, Lara; RIBEIRO, Raisa D. e BARBOSA, Renata. In: RIBEIRO, Raisa D.; MIGUENS, Marcela; BARBOSA, Renata (Coord). Direito e Gênero – Violências e Vulnerabilidades (vol II). 2020, p. 68-95.

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