Cultura

Hard: um grotesco conto de fadas pornô

Quem assiste a produção da HBO Brasil vê um universo da indústria pornográfica brasileira romantizado

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Se o sexo ainda hoje é um assunto tabu pra muita gente, ele continua sendo um dos assuntos que mais vende. Não só a pornografia se alimenta disso, em um negócio extremamente lucrativo, mas a indústria audiovisual como um todo também tem entrado nessa onda, com a produção de uma leva de filmes e séries que trazem o sexo como protagonista de seus enredos. Algumas bem elaboradas, outras nem tanto.

Misturando sexo, romance e pornografia, a HBO lançou a série Hard, que basicamente conta a história de Sofia, uma dona de casa, pudica, mãe de dois adolescentes, que se vê obrigada a assumir a empresa de seu falecido marido. Ocorre que no dia do velório, ela é surpreendida com a notícia de que a companhia que o marido comandava ao longo do casamento era uma empresa de pornografia.

Com todo o seu puritanismo e sem poder se desvencilhar da empresa, Sofia resolve assumir a produtora e se depara com uma empresa pornográfica familiar: todos os empregados têm uma conexão enorme e amam o seu falecido marido, se sentem confortáveis e acolhidos no ambiente de trabalho e, inclusive, sua sogra trabalha na produção dos filmes. É uma grande família, como fazem questão de dizer, e até os animais, usados para sexo, parecem felizes.

As mulheres amam trabalhar na indústria pornô, porque ‘ganham em um dia de trabalho o que em outros setores ganhariam em um mês’. E parece até que se fosse ofertado outro tipo de trabalho tão bem remunerado quanto esse, elas iriam preferir o pornô, porque são ninfomaníacas, que só pensam em sexo e querem fazer sexo a todo instante. É um conto de fadas pornô, muito caricaturesco.

Alguns dos problemas da pornografia chegam até a ser mencionados, de relance, como a padronização dos comportamentos e dos scripts sexuais. Em uma cena no consultório médico, a mulher aguarda o toque do médico para apagar seu fogo – é o corpo da mulher sempre disponível, em chamas, querendo sexo sem precisar dizê-lo. Juju, uma das atrizes pornô, chega a dizer que “em cena e na cama, quanto mais gosta mais alto geme”, em uma nítida referência ao sexo performático.

A cada novo episódio, o diretor traça o mesmo roteiro, com grande felicidade e com a criatividade clássica dos produtores pornográficos. E adverte, “sem beijos, porque aqui você é a atriz pornô e sou eu quem mando” – afinal de contas, sexo pornográfico passa longe de qualquer tipo de conexão entre as pessoas envolvidas.

 

Sofia fica perplexa com aquele novo ambiente, acha aquilo tudo aquilo de muito “mau gosto” e propõe mudanças profundas na produtora. Não se sabe muito bem o que a incomoda de verdade, mas parece que é o sexo em si. O julgamento moral dela é enorme, puro puritanismo, e não se relaciona nenhum pouco com os problemas reais da pornografia.

Sofia quer transformar o mundo pornô em arte de qualidade: quer transformar os atores pornôs em atores, com um único workshop mágico de teatro. O aclamado diretor, que dirigiu o workshop, por outro lado, resolve transformar a sua peça em pornografia, determinando que os atores transem no palco.

Depois do quarto episódio, o que já era ruim, fica ainda pior.

A solução para o puritanismo de Sofia foi “transar de verdade” com o mais popular ator pornô de sua empresa e do ramo: Marcello Mastroduro. A partir daí, ela se transforma em uma mulher confiante e poderosa, que passa a administrar a empresa com uma capacidade gerencial impressionante. O que ela precisava era de um homem e de uma boa transa, não é mesmo, patriarcado?

As alterações promovidas pela protagonista deixam de ser sobre a estrutura da atuação e volta-se a promoção dos prazeres. Após realizar o sonho de sua melhor amiga de ser atriz pornô por um dia, Sofia passa a agenciar seus funcionários para realizarem as fantasias sexuais de mulheres de alta sociedade, mas tudo gravado diante de câmeras, porque senão viraria cafetinagem — e isso, no Brasil, é crime.

A série até traz reflexões interessantes, mas muito mal implementadas. Com uma nítida inversão das posições tradicionalmente assumidos pelos gêneros, a série coloca o homem no papel de pessoa apaixonada que renuncia a sua própria profissão para agradar a sua amada.

Mastroduro deixa a indústria pornográfica por Sofia, mas o estigma da sua antiga profissão o persegue. “As pessoas olham para você e veem o seu pau”, diz um agente do ramo, demonstrando que ele estará para sempre vinculado à essa imagem — problema que é enfrentado pelas mulheres, em geral, quando têm vídeos íntimos vazados, por exemplo, e pelas trabalhadoras do sexo, em particular.

Hard se debruça sobre uma realidade existente que é muito pouco enfrentada por nós: a pornografia. Parece querer normalizar a indústria, diminuir o estigma que a circunda e tecer uma crítica social à moralidade, mas se perde completamente no caminho, construindo um mundo ilusório e grotesco de conto de fadas.

A série tenta fazer piada em vários momentos, a começar com o nome dos filmes, que fazem trocadilhos com sexo dos títulos conhecidos. É realmente uma verdadeira comédia, como a indicação de gênero indica, mas dela não se extrai nenhuma graça. Hard mesmo foi assisti-la…

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