Juliana Teixeira

[email protected]

Professora, doutora em Administração pela UFMG, pesquisadora do NEAB – Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da UFES, e associada da ABPN – Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as.

Opinião

Quem passou por Madalena e não a enxergou também é responsável

O silêncio precisa ser rompido, escreve a professora Juliana Cristina Teixeira

Madalena Gordiano. Foto: Reprodução/TV Globo
Apoie Siga-nos no

por Juliana Cristina Teixeira*

A indignação tomou conta das redes nos últimos dias com a notícia da libertação de Madalena Gordiano pelo Ministério Público do Trabalho e Polícia Federal. Mais uma mulher negra vivendo em condição de escravização. Trabalhadora doméstica sem salário e nem direitos.

A reportagem do Fantástico mostrou o quarto em que vivia, pequeno e sem ventilação. O famoso quartinho que ainda figura nos anúncios de imóveis como “dependência de empregada”.

Dessa vez, sentam nas carteiras de aulas que seriam destinadas a uma branquitude acrítica (conceito de Lourenço Cardoso), Maria das Graças Rigueira, Dalton Rigueira, Valdirene Rigueira, membros e amigos da família.

Não deixam de ser responsáveis, também, quem esbarrou em Madalena nos espaços onde ela morou e sequer a enxergou.

Corpos negros ora perseguidos, ora invisibilizados, sempre alvos. Mais um dos efeitos do racismo, não como prática individual, mas como sistema de opressão que estrutura nossas relações.

Quando Madalena, aos 8 anos, bateu na porta de Maria pedindo comida, seu corpo foi lido como pertencente a uma posição estruturada a partir da raça.

Ali, a criança tornou-se objeto.

Como diz Frantz Fanon, as pessoas negras não são consideradas nem humanas. Essa desumanização é encorajada por um Estado ausente, que ainda engatinha na reparação da enorme dívida que tem com a população negra.       

Madalena não pôde nem rabiscar o título de sua história. Foi retirada da escola, exerceu trabalho infantil, algo comum na trajetória de trabalhadoras domésticas no país. Aos 32 anos, foi repassada para o filho de Maria.

Nos 14 anos em que trabalhou para ele, Dalton não a incentivou a estudar. Embora professor, ele acreditava que a educação não beneficiaria Madalena. Letramento não significa ser antirracista. Como nos conta Sonia Roncador, a nostalgia romantizada em relação às “mães pretas” segue presente nas memórias de infância de escritores e intelectuais brasileiros, como Carlos Drummond de Andrade, José Lins do Rego e José Américo de Almeida, silenciando a violência contra as escravizadas domésticas.

Ora, se Madalena estudasse, ela poderia romper com o que a psiquiatra Neusa Santos Souza chama de “mito negro”. Construído por pessoas brancas, esse mito se baseia na negação do racismo e cria ficções sobre as pessoas negras que contribuem para naturalizar sua subalternização. Sintoma dessa naturalização é a afirmação de Dalton de que Madalena se sentia parte da família. O já clássico “quase da família” que ampara precarização do trabalho doméstico no Brasil. Além de sentir que tem o poder de nomear o sentimento de Madalena, Dalton não se dá conta de que já conhecemos esse discurso de cor.

A crueldade do caso choca, mas a naturalização que o subsidia não é novidade. Madalena já poderia ter encontrado outros vizinhos e membros da igreja que denunciassem sua condição. Mas os imaginários brancos são limitadores.

Em uma pesquisa, uma trabalhadora doméstica branca me contou que moradores de um prédio de classe média alta se surpreendiam quando descobriam que ela não era uma vizinha. Se surpreenderiam também no caso contrário, colocando como trabalhadora a única possibilidade para uma mulher negra naquele espaço. Como fala a professora Josiane Oliveira, “quando falamos sobre racismo é preciso entender que esse não é um problema do negro. O problema é o racismo e falar sobre isso é falar, também, sobre a construção de imaginários brancos sobre nós”.

Ao se casar com um tio de Valdirene Figueira, idoso, Madalena é utilizada como meio para um “investimento” financeiro. Tinha sua pensão roubada e era privada até de um simples sabonete, segundo a reportagem.

Lélia Gonzalez afirma que as trabalhadoras domésticas passaram por vários estágios de simbologia da “mucama permitida”: é aquela que a branquitude pode, com orgulho, ostentar, sem se desvencilhar do imaginário de subalternização de mulheres negras. Isso se reflete na dificuldade de se nomear, até hoje, a trabalhadora doméstica como uma trabalhadora. “É da família”. “É alguém que ajuda”. “É uma secretária do lar”. São vários silenciamentos.

Mas o silêncio precisa ser rompido.

O que você vai fazer hoje pela trabalhadora doméstica que trabalha para você? Ou a que pode estar em apuros na casa ao lado?

É sobre nos responsabilizar coletivamente e cobrar justiça. É também sobre apoiar a Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas e os sindicatos a ela vinculados.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo