Opinião

Lula refundou o imaginário brasileiro

‘Foi Lula e fomos todos os deserdados que falamos para o mundo, que nele se reconhece, apoia e estima’, escreve Milton Rondó

Foto: Ricardo Stuckert
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“Os fatos não deixam de existir só porque os ignoramos.”
Aldous Huxley.

Com quase 280 mil mortos por Covid-19, o Brasil é o País com o maior número de vítimas por dia.

Por outro lado, o atraso na vacinação induz a mutações do vírus, cada dia mais letais.

A única notícia boa, em meio ao desastre sanitário e socioeconômico em que vamos sobrevivendo, é a retomada, por Lula, de seus direitos políticos ilegitimamente usurpados pela Lava Jato.

Os líderes mais importantes do mundo se manifestaram a respeito. A entrevista coletiva de Lula foi coberta por representantes de 162 órgãos da imprensa internacional.

Para um País que se tornou um pária, trata-se de feito ciclópico.

Em sua fala, Lula em muito recordou o bordão de outro latino-americano ilustre, o Che Guevara: “É preciso ser duro, mas sem perder a ternura, jamais…”

Lula refundou o imaginário brasileiro, abraçou com suas palavras a esperança de 220 milhões de pessoas e não deixou de considerar as opiniões de aliados, como Roberto Requião, para quem as privatizações da Petrobras têm de ser revistas.

Foi Lula e fomos todos os deserdados que falamos para o mundo, que nele se reconhece, apoia e estima.

De fato, o ex-presidente tem o condão da radicalidade, de ir à raiz das coisas, etimologia que ele mesmo esclareceu em sua fala.

Não é pouco: é muito, na verdade.

“Ser ou não ser”, inquiriu o bardo Willian Shakespeare, em Hamlet, o atormentado príncipe da Dinamarca.

Trata-se, com efeito, de desafio maior. Em primeiro lugar, somos (determinismo). Tornarmo-nos é passo seguinte (possibilismo).

Em “Clarice, uma vida que se conta”, de Nadia Batella Gotlib, volume editado pela EDUSP, o ser está todo o tempo no centro da pessoa Clarice Lispector – vida e obra.

Como para Lula, o ser determina o fazer e como fazê-lo.

Naquele livro de Nadia Gotlib, aprendemos que já nas primeiras crônicas de Clarice a questão aflora em reflexões: “Um amigo meu, médico, assegurou-me que desde o berço a criança sente o ambiente, a criança quer: nela o ser humano no berço mesmo já começou.”

Como vemos na biografia escrita por Nadia, embora Clarice fosse avessa em medir a influência das próprias origens judaicas sobre a obra dela, é evidente a radicalidade com que viveu desse determinismo – de forma até inconsciente, o qual remonta ao “Eu sou”, etimologia de Javé.

Nadia ressalta que, ao comentar a personagem Joana, de Perto do Coração Selvagem, Clarice analisa: “…não é um ser uno e simples, mas um ser múltiplo, feixe vivo de possibilidades que se contradizem e se anulam”.

Em A descoberta do Mundo, coletânea de crônicas de Clarice, Nadia recorda que em uma das crônicas a autora: “…mostra-se cansada de tudo. Pretende tomar um banho e perfumar-se ‘com um perfume que é segredo meu. Só digo uma coisa dele: é agreste é um pouco áspero […], com uma grande doçura escondida. Ele é… Adeus, Sveglia. Adeus para nunca sempre. Parte de mim você já matou. Eu morri e estou apodrecendo. Morrer é. E agora – agora adeus”.

Importante recordar que, se Clarice herdou dos pais a cultura judaica, da mãe herdou também – ainda mais forte – o sentimento de culpa tipicamente judeu, por ter coincidido o parto dela com a doença que tornaria a mãe inválida e, posteriormente, a levaria à morte.

Nadia recorda que, em A Paixão segundo G.H., Clarice aprofundará essa reflexão: “É preciso ser maior que a culpa”. Igualmente, tratará ali do amor, que para João Evangelista, o discípulo que Jesus amava, era a própria definição de Deus: “Deus é amor”.

Naquela obra, Clarice dirá: “O amor já está, está sempre. Falta apenas o golpe de graça – que se chama paixão”. Também Deus é onipresente, como o amor para ela.

Em uma síntese tão brasileira – provável razão pela qual é tão amada no exterior como símbolo também do Brasil, Nadia Gotlib recorda que naquela obra Clarice cita textualmente a passagem do Apocalipse segundo São João: “Porque não és frio nem quente, porque és morno, eu te vomitarei da minha boca”. Assim, “somos feitos” nós brasileiros, usando uma expressão da cultura italiana.

Tão sábias reflexões não poderiam deixar de buscar a omnisciência (outra característica do Criador): “Quem vive totalmente está vivendo para os outros…a vida não é um estado de felicidade, é um estado de contato”. Até na pandemia que não viveu, Clarice seria visionária, premonitória.

A propósito, Nadia Gotlib observa ainda: “O isolamento explícita-se como função iniciática de aproximação, reintegrando-se não pela razão, mas pela difícil experimentação do ser, destituindo-se da máscara, do individual inútil, pela despersonalização: ‘perda de tudo o que se possa perder, e, ainda assim, ser”.

Lula perdera os direitos políticos, a liberdade, a esposa, o irmão e o neto, mas não perdeu a dignidade, a certeza da verdade, a orientação segura de que a luz não sucumbe às trevas.

Começar seu discurso, agradecendo ao Papa Francisco – que recém retorna de Ur, pátria última de judeus, cristãos e muçulmanos – e a Alberto Fernandez, presidente da Argentina, terá deixado felizes Clarice e Ernesto, Che. A nós, também.

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