Luiz Gonzaga Belluzzo

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Economista e professor, consultor editorial de CartaCapital.

Opinião

Lula e os desumanos tecladistas do formigueiro fervilhante das redes

Eles estão soterrados na servidão das sombras e das inverdades. Entalados nas algemas da concorrência por likes, sem propósito nem destino

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No sábado 2, recebi mensagens de velhos companheiros da também Velha Academia do Largo de São Francisco. Em sua maioria, as mensagens condenavam a desumanidade das manifestações dos internautas que celebravam a morte do neto do Lula.

Contestei essas afirmações com o título do livro de Nietzsche: Humano, Demasiado Humano. Nesse “livro para espíritos livres”, publicado em 1878, Nietzsche avança em seu projeto de romper com toda a tradição da metafísica, da religião, da moral e dos costumes do Ocidente e de se afirmar como um velho imoralista impiedoso, “além do bem e do mal”.

Foram muitos os que estranharam a minha interpelação à obra de um pensador que travou uma batalha feroz contra os valores do cristianismo e da civilização. Respondi que Nietzsche dedicou o livro para os espíritos livres. No exercício da liberdade de espírito, encarei o risco de aceitar os desafios de um pensamento hostil aos valores da dita civilização ocidental.

Nietzsche diz no prólogo de Humano, Demasiado Humano que os espíritos livres são apenas uma suspeita, um projeto que confessa ter inventado, mas que ainda não existem, nem nunca existiram.

Já vaticinou Nietzsche: “É mais cômodo para os espíritos mergulhados na servidão retornar à sombra e à inverdade. O prêmio da liberdade está reservado para o super-homem, ou seja, para quem se alçar acima daquilo que é humano, demasiado humano.”

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Nietzsche assesta as baterias contra a cultura do presente, aprisionada nas banalidades da fruição utilitarista e do ganho monetário. Viciada nos empenhos de conseguir “o maior número possível de empregados”, a sociedade do presente engendra a tendência incontrolável à burocratização e massificação. Aqui convém abrir aspas para as palavras do filósofo: “um fervilhar de formigueiros”, “uma mixórdia plebeia”.

Os aforismos de Nietzsche exclamam protestos contra as virtudes do cristianismo, contra o ressentimento e a má consciência dos fracos, permanentemente mergulhados na mediocridade da sociedade de massa. Nietzsche não pretende fazer a crítica das virtudes e dos valores da sociedade ocidental e cristã, mas sim promover a sua destruição para poder recriá-los de acordo com a Natureza Essencial do Homem. A rebelião conservadora de Nietzsche deplora igualitarismo da sociedade de massa e exalta o sobre-humano, a Vontade de Potência.

Friedrich Nietzsche/Reprodução

Não é difícil imaginar o que diriam os aforismos de Nietzsche a respeito dos humanos soterrados na imediatidade do teclado e na “mixórdia plebeia” das redes sociais. Os leitores de CartaCapital hão de permitir lembrá-los de minhas opiniões a respeito das chamadas “redes sociais”. Os bárbaros do teclado manejam com desembaraço a técnica das oposições binárias, método dominante nas modernas ações e interações entre os participantes das redes. Nos comentários da internet, vai “de vento em popa” o que Herbert Marcuse chamou de “automatização psíquica” dos indivíduos. Os processos conscientes são substituídos por reações imediatas, simplificadoras e simplistas, quase sempre grosseiras, corpóreas.

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Em sua arrogante mediocridade, os tecladistas do formigueiro fervilhante das redes não entendem que estão soterrados na servidão das sombras e das inverdades. Entalados nas algemas da concorrência por likes, sem propósito nem destino, os humanos desataram um festival de ignomínias contra o ex-presidente Lula. Eles “se acham”, mobilizam multidões de “se achões”, mas, incapazes de reconhecer a humanidade do outro, não encontram a si mesmos.

Não se trata de um conflito entre indivíduos bons ou maus, ruinzinhos versus bonzinhos, mas sim do apodrecimento do tecido social, uma peste devastadora que contamina o espírito humano com o fedor dos esgotos. Sim, o espírito humano.

O que aparece sob a forma farsista de um conflito entre o bem e o mal está objetivado em estruturas que enclausuram e deformam as subjetividades exaltadas. A indignação individualista e os arroubos moralistas são expressões da impotência que se metamorfoseiam em desvario autoritário. Como disse meu amigo Frederico Mazzucchelli, o homem ressentido nem sequer tem consciência de seu ressentimento.

Norbert Trenkle reconhece na crítica nietzschiana da modernidade “a expressão mais avançada do sujeito empenhado na concorrência desenfreada”. Coisas menos patéticas, mas não menos agressivas podem ser encontradas em inúmeros manuais de gestão e nos panfletos social-darwinistas da propaganda do Liberalismo e do Neoliberalismo. Na invocação nietzschiana da “Natureza Essencial do Homem”, Trenkle desvenda a afirmação mistificada e inconsciente da ordem dominante e de suas leis da selva. Atraiçoado por sua indignação contra a cultura do presente, Nietzsche atolou a contrafilosofia no pântano da ordem social que pretendia criticar. Humano, demasiado humano.

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