Opinião

Lima Barreto sempre

O autor estava certíssimo e o mundo atravessaria a maior barbárie de todos os tempos

O escritor Lima Barreto. Foto: Reprodução
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“A Crônica Militante”, de Lima Barreto, volume editado pela Editora Expressão Popular, contém algumas das melhores peças críticas do grande Lima Barreto.

Embora tenham sido escritas há exatamente um século, são de enorme atualidade.

O raio de interesses daquele carioca da gema, como ele se definia, vão das questões raciais à política externa.

Sobre esta última, lemos: “Se lêssemos os autores corajosos, sinceros e honestos, veríamos bem que os processos políticos dos Estados Unidos são os mais ignóbeis possíveis; que eles têm por nós um desprezo rancoroso e humilhante; que quando falam em liberdade, em paz e outras coisas bonitas, é porque premeditam alguma ladroeira ou opressão.”

No mesmo argumento, o autor acrescenta: “Sobre a guerra do México, diz Eduardo Prado, na sua ‘Ilusão Americana’: ‘A má fé do governo de Washington começou com a questão do Texas. Fomentou quanto pôde a revolta daquele território, animando-o a separar-se do México, para mais depressa absorve-lo, e depois declarou guerra ao México, verdadeira guerra de conquista, humilhou aquela república até ao extremo e arrebatou-lhe a metade do seu território. Ó fraternidade!'”.

Prossegue o autor: “O que, entretanto, Eduardo Prado não diz, mas se pode ler nos ‘Études Morales et Politiques’, de E. Laboulaye, é o verdadeiro fito dessa guerra criminosa. Os Estados do sul dos Estados Unidos, escravagistas, temendo perder a maioria que tinham no Senado americano, fomentaram a insurreição do Texas que foi afinal anexado aos Estados Unidos, dividido em estados, dando estes ao Senado representantes perfeitamente escravocratas. Não havia, portanto, perigo de passar nenhuma lei que acabasse com a escravidão; mas, não contentes com isso, conseguiram que a União declarasse a guerra, para obter mais territórios e, vencedores, restabeleceram a escravidão, onde o governo do pobre México já a tinha abolido desde muito. Eis aí o que foi a guerra do México. Parece incrível; mas não é nem parecerá se-lo quando se sabe que os “sociólogos” americanos daquelas épocas foram buscar no Novo Testamento base para justificar a escravidão. Sabem onde? Na tocante epístola de São Paulo a Filemon. Eles são capazes de tudo…”.

Em contraste, a boa notícia da semana (única) veio dos EUA: a Boeing desistiu de “comprar” na bacia das almas a Embraer, a empresa pública construída com o dinheiro dos brasileiros e brasileiras e que fabrica os produtos com maior valor agregado da nossa pauta de exportações.

Deus não nos abandonou, como chegamos a pensar.

Ao lado disso, a rejeição a Bolsonaro cresceu: 54% da população já é favorável ao “impeachment”, sem o qual não se poderá enfrentar as emergências sanitária e econômica.

Em outra crônica, Lima Barreto complementa, a propósito da relação que a oligarquia local mantém com a de lá: “Nós não estamos ficando surdos com as coisas americanas, mas estamos ficando cegos; e, na clássica imagem, somos como as mariposas que a luz atrai, para matá-las”.

Sobre a Europa de seu tempo, pós Primeira Guerra Mundial, também vaticinou: “…a paz foi assinada entre os beligerantes que levaram cinco anos a bombardear-se mutuamente, para, afinal, nada resolverem ou, antes, resolverem um tratado de paz, cujas condições e cláusulas trazem no bojo outras guerras futuras.”

Nesse sentido, citou o histologista espanhol Ramon y Cajal: “Os vencidos terão apenas como fito imitar os métodos dos vencedores e experimentar vencer por seu turno. Quando os órfãos de hoje atingirem a maioridade, a terrível chacina recomeçará”. Talvez antes, digo eu; é questão de dez anos”.

Infelizmente, estava certíssimo e o mundo atravessaria a maior barbárie de todos os tempos, com a ascensão do fascismo e do nazismo, ambos, aos olhos da população, “antissistêmicos”, como Jair Bolsonaro, a versão extemporânea e periférica daqueles movimentos de extrema-direita, de tristíssima memória.

Em contraposição, Lima Barreto cita o biólogo russo Piotr Kropotkine, que no livro dele “L’Entraide” (a ajuda mútua) contrapõe: “As partes componentes de um ser vivo ajudam-se umas às outras. Assim, em todas as relações dos entes animados, a luta pela existência tende a tornar-se a luta pela coexistência”.

Complementa Barreto: “A vitória do homem na Terra sobre as grandes feras não foi devido à sua força muscular, ao seu isolamento, à sua capacidade de lutar corpo a corpo com elas. Foi devido à sua inteligência, e a inteligência provém da capacidade do homem para a sociabilidade com os seus semelhantes. Ela aumentará tanto mais, em extensão, quanto mais perfeita for essa sociabilidade”.

Para não parecer cabotino e não mencionar a contribuição negativa que minha profissão deu à visão competitiva em prejuízo da colaborativa, a qual levaria ao ocaso da paz mundial, noto outra passagem das crônicas de Lima Barreto em que afirma, citando, por sua vez, o pensamento do historiador francês Ernest Lavisse: “…a guerra não pode ter como remate um tratado de paz redigido por diplomatas, porquanto seria o fim miserável de um grande drama”.

Aplicado ao Brasil, queremos Bolsonaro fora, levando junto a trupe medonha dele, os quais anatemizam o estado, destruindo a sociedade e a economia nacional, mas dele sugam até a última gota de sangue, em exclusivo benefício próprio.

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