Maria Rita Kehl

Opinião

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Lembrar é resistir

No momento em que Lula hesita em rememorar os 60 anos do golpe, compartilho o relato de um líder camponês torturado durante a ditadura

Pária no mundo. A chacina de Eldorado dos Carajás e o assassinato de Dorothy Stang figuram entre os horrores que mancham a reputação do Brasil no exterior – Imagem: Alberto César Araújo/Greenpeace Brasil, Global Church e João Ripper/Arquivo CPT
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Recentemente, o governo federal decidiu apoiar o projeto Memórias dos Massacres no Campo, lançado em 2020 pela Comissão Pastoral da Terra e pela UnB. Com verba de 2 milhões de reais, a nova fase da pesquisa conta com a participação do Ministério da Justiça, que montou uma força-tarefa para analisar 57 chacinas de trabalhadores rurais e povos indígenas de 1985 a 2023. O recorte temporal exclui as matanças durante a ditadura, já esmiuçadas pela Comissão Nacional da Verdade, da qual tive a honra de participar. Neste momento de hesitação do governo Lula em relação à memória dos 60 anos do golpe de 1964, gostaria de compartilhar algumas anotações do depoimento prestado por Manoel Conceição Santos à CNV, em novembro de 2013, na cidade maranhense de Imperatriz.

Símbolo da luta pela reforma agrária, o líder camponês presidia o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Pindaré-Mirim, o primeiro do Maranhão, quando os militares tomaram o poder. Sobreviveu à ditadura mesmo depois de ser baleado, preso, torturado e mutilado. Buscou refúgio em Genebra e, com a Lei da Anistia de 1979, retornou ao País, ajudando a fundar o PT no ano seguinte. Antes de falecer em 2021, acometido por uma broncopneumonia, deixou esse dilacerante relato das sevícias sofridas na ditadura. Resgato trechos do depoimento por entender que a preservação da memória é o único antídoto para evitar a repetição de tragédias do passado.

Sobre o golpe: Em 1964, estava em São Luís fazendo uma manifestação sobre a questão agrária. Foi Dom Fragoso (bispo de Crateús) quem me tirou dali. Ele mandou as freiras me esconderem. Elas me botaram assim, no meio daquelas saias grandes delas. Me botaram num carro e nos deixaram em Pedreira do Mearim, Tufilândia. Fiquei três meses lá. Os militares eram assim: reunião de mais de três pessoas já era subversão. Lá em casa, juntavam 30, 40 pessoas para conversar, e eu fui considerado subversivo. Em julho de 1964 fui preso, passei um mês na cadeia. Me castigaram de um jeito que eu tenho até vergonha de falar. Um mês na cadeia, apanhando todo dia para contar onde estavam meus companheiros da AP (Ação Popular), para matarem um por um. Haja cacete. Mas eu não disse uma palavra contra qualquer companheiro.

Reforma agrária: Sempre fui a favor da luta pela terra. Mas não queria guerra, queria uma luta mais pacífica. Só que não tinha jeito, ou a gente morria ou virava revolucionário. Foi aí que pedi filiação na AP, para ser um militante. Como era, antes da filiação política: Raimundo Alves de Castro era delegado da polícia na região de Mearim, e passou a ser amigo nosso. Quer dizer, ele não queria encrenca conosco. Depois veio o filho dele, Manacé de Castro, e ficamos inimigos. Ele veio para o Mearim, casou-se com uma mulher do Pará e passou a liderar os amigos deles, pistoleiros, para matar gente. (…) O golpe era para dar um jeito em nós, nos pobres que lutavam, tinham educação e tudo. Não gostavam do que a gente fazia. Não matavam o padre que estava educando, mas matavam nós.

Nova prisão e tortura: Fiquei nove meses desaparecido, numa cela clandestina, tipo geladeira, trancado. Só saía para prestar depoimento para a polícia. Costuraram meus testículos e pênis, furando com agulha. Quase morri de dor. (Meu testículo) parecia um ralo. Diziam que eu era o maior assassino do Maranhão, mas eu nunca matei ninguém. Ameaçavam de me jogar no mar ou na mata de avião. Era uma confusão do cão. Queriam nomes de amigos. (…) Quando eu estava no Rio de Janeiro, me tiraram da tortura e me levaram para uma casa com muita caveira de gente morta: “Se não falar você vai ficar desse jeito”. Continuei quieto.

Fantasmas do passado: A coisa que me dá mais dor no coração é falar disso, até me dá mal-estar. Choque elétrico, pau de arara, o diabo… Mas faço questão (de contar), para não deixar nada sem falar, para limpar isso de dentro de mim. Isso faz parte da minha vida, esses crimes desgraçados. Dá muita raiva. Tortura é uma coisa terrível, você não crê em mais nada, o cara quer que você diga o que você não fez.

Reparação: Só queria que o Estado julgasse as pessoas que fizeram essas ruindades conosco. E os que ficaram na pior, com os filhos passando fome, queria que o Estado pudesse indenizar, porque merecem. Recebi uma mixaria, sei que teve companheiros “doutores” que receberam milhões de reais sem ter passado o que eu passei. Perdi a perna, não tive mais condição de trabalhar. Recebi 90 mil, mas dei dinheiro para tanta gente mais necessitada que acabou. Não comprei nada. Moro numa unidade do “Minha Casa Minha Vida”, que uma filha comprou em meu nome.

Publicado na edição n° 1304 de CartaCapital, em 03 de abril de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Lembrar é resistir’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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