

Opinião
Lembranças futebolísticas
As feições do País do futebol, do desenvolvimento e da democracia nos anos 1950


Ás vésperas da Copa do Mundo a ser disputada no Catar, ouso reapresentar aos leitores de CartaCapital minhas recordações futebolísticas. Recordações já exaradas no livro Ensaios Sobre o Capitalismo do Século XX. Decidi reapresentá-las porque embaralham histórias do futebol e as memórias de vida de um paulistano, neto de italianinhos.
São Paulo, lá pelos idos de 1954, comemorava o IV Centenário. Os bondes trafegavam orgulhosos com a inscrição “São Paulo, a Cidade que mais cresce no mundo”. Os paulistanos, com seus chapéus Ramenzoni ou Prada, ternos escuros e gravata, esforçavam-se para corresponder à imagem de um povo afanoso e apressado, empenhado em cuidar do progresso do Brasil.
Naquele tempo, a silhueta dos edifícios do Banco do Estado de São Paulo e do Banco do Brasil já havia obscurecido a figura outrora imponente do velho Martinelli. As chaminés espetavam os céus da cidade da Zona Leste ao Ipiranga, da Lapa a Santo Amaro. Nem por isso, lembra bem Renato Pompeu, a oligarquia paulista – derrotada na Revolução de 1932 – deixou de cultivar ressentimentos contra o então presidente Getúlio Vargas.
Era, então, enorme a distância entre o Rio de Janeiro e São Paulo. Distância de hábitos, costumes, estilo de vida. (Lembro-me, estudante do Colégio Santo Inácio e seminarista dos jesuítas, no Rio, que o Irmão Coadjutor responsável pela “despensa” do Aloisianum manifestou estupefação quando sugeri que incluísse a escarola entre os pertences da salada.) Mas o Rio era a capital da República, referência política e cultural do País. São Paulo era a adolescente recém-enriquecida e mal chegada da Província, falando com um sotaque entre o “italianado” e o acaipirado. Ensaiava, acanhada e desajeitada, o seu novo papel de metrópole.
Havia, sim, um “progressismo” ingênuo que caminhava lado a lado com a discussão intensa sobre os rumos da modernização.
Isso se acentuou nos anos do governo de Juscelino Kubitschek, quando a industrialização de São Paulo avançou, de fato, 50 anos em cinco, com o desenvolvimento da produção de bens duráveis, sobretudo com a chegada da era automobilística e o avanço do setor de bens de capital.
No futebol, a rivalidade entre cariocas e paulistas era feroz, doentia. As convocações para a Seleção Brasileira eram a hora em que paixão e os golpes baixos davam o tom. Os paulistas costumavam levar a pior. Reclamaram muito de Flávio Costa, que chamou quase todo o time do Vasco da Gama para a Seleção de 1950 e deixou de fora os paulistas como Cláudio Cristóvam de Pinho, então ponta-direita do Corinthians, e o palmeirense Waldemar Fiume, o “Pai da Bola”.
Os paulistas vingavam-se no Rio-São Paulo e no Campeonato Brasileiro de Seleções. Até 1957 – quando o Fluminense de Castilho, Valdo e Escurinho quebrou o encanto –, nenhum clube carioca havia vencido o torneio interestadual, reiniciado em 1950. O Maracanã, o templo do futebol, ficou conhecido como Recreio dos Bandeirantes.
O “progressismo” e o debate sobre os rumos da modernização se acentuaram no governo Kubitschek
Em 1954, a Seleção Paulista, comandada por um “carioca” do estado do Rio, Jair da Rosa Pinto, o “Jajá de Barra Mansa”, venceu o Campeonato Brasileiro de Seleções. O jogo final, como sempre, foi marcado para o Rio de Janeiro. Naquela noite de quarta-feira, a Pauliceia nem piscava, os ouvidos colados no rádio, esperando a narração de Pedro Luís. (Podem crer: Paulistas vs. Cariocas era tão ou mais importante do que Brasil vs. Argentina ou Uruguai.) Meu tio Luís Mello, são-paulino, estava pálido, suava frio e só abriu a boca quando Julinho, depois de driblar o incomparável Nilton Santos, cruzou para Baltazar, o “Cabecinha de Ouro”, de meia-puxeta, como se dizia então, fazer o quarto gol, o da vitória. Quando a bola ainda viajava entre os pés de Júlio Botelho e a “virada” de Baltazar, meu tio gritou “gol!”, segundos antes do rapidíssimo Pedro Luís e, portanto, antes do grande locutor anunciar que a “redonda venceu a vigilância do guarda-metas Osni”.
O saudoso jornalista e escritor Renato Pompeu observa em seu livro Canhoteiro que, “acima de ter sido a era do rádio e dos jornais esportivos, a era dos bares de calçada e a era da democracia nacionalista, a era Canhoteiro se confundiu, na história da cidade e na vida da grande massa da população, com a era dos ônibus. Além do rádio, que nem todos tinham, e dos jornais, que nem todos liam, a fama de Canhoteiro espalhou-se nas conversas entre os passageiros de ônibus”.
De fato, São Paulo começava a assumir as feições de uma metrópole de massas. O problema do transporte coletivo já importunava o povo da cidade e, não raro, eclodiam manifestações violentas contra o aumento das passagens de ônibus. A influência dos meios de comunicação era crescente. O rádio era, sem dúvida, o mais importante, mas já na segunda metade dos anos 50, no período Juscelino, a televisão ganhava o seu lugar nas casas da classe média e até dos trabalhadores paulistanos.
Os jogos realizados na capital e mesmo em algumas cidades do interior eram transmitidos ao vivo. Foi assim que consegui ver a famosa decisão de 1957 entre São Paulo e Corinthians, o “jogo das garrafadas”, que Renato descreve tão bem no seu livro. Nessa partida, vencida pelo São Paulo por 3 a 1, Canhoteiro fez o segundo gol, num passe de Zizinho. “Canhoto”, como “Mestre Ziza” o chamava, atormentou, mais uma vez, o seu marcador Idário. Tento lembrar dos lances do jogo. Minha memória registra – e não sei se me trai – a desastrada “voadora” de Idário sobre Canhoteiro; o gol de Maurinho, o terceiro; a corrida indignada de Gilmar sobre o ponta-direita do São Paulo, que antes de chutar perguntou qual o canto preferido pelo goleiro corintiano. Na sequência, a chuva de garrafas que se derramou nas então chamadas gerais do Pacaembu.
O ano esportivo de 1957 deve ser lembrado não apenas pelas grandes decisões acontecidas no Rio e em São Paulo. No Rio de Janeiro, o Botafogo, sem ganhar um campeonato desde 1948, massacrou o Fluminense na final: 6 a 2, com três gols de Paulo Valentim e uma exibição de Garrincha que seria qualificada pelos locutores da época como sensacional. Foi também em 1957 o ano em que Pelé surgiu para o futebol profissional e estreou na Seleção Brasileira, num jogo pela Copa Rocca, em que a Argentina venceu o Brasil por 2 a 1. Nesse momento, na verdade, estava terminando a geração que disputou o Mundial de 50 e nasciam os campeões do mundo de 1958 e 1962. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1235 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE NOVEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Lembranças futebolísticas”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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