Esther Solano

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Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Complutense de Madri e professora de Relações Internacionais da Unifesp

Opinião

A camisa é nossa

Como ato político, apesar de não gostar de futebol, pretendo vestir verde-amarelo, assistir aos jogos e torcer pelo Brasil

Foto: Philip FONG / AFP
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Um dos meus primeiros atos políticos no pós-eleições foi comprar uma camiseta da Seleção brasileira para meu filho (Ok, comprei na feira de minha rua, meu novo ardor patriótico não é tão grande para gastar grana na camisa oficial). Quem me conhece sabe que sou de atletismo, basquete, handebol… Não curto futebol, acho que não assisti a mais de três ou quatro jogos completos na minha vida, mas pretendo vestir verde-amarelo, assistir aos jogos e torcer pelo Brasil. E não é que tenha me encantado espontaneamente pelas cores nacionais ou que, de repente, cresça dentro de mim um fervor nacionalista exaltado, ou tenha me transformado na mais apaixonada defensora do Neymar (isso jamais, tem limites que a dignidade impede ultrapassar, verde-amarela sim, Neymar jamais). É disputa, pura disputa. Disputa dos símbolos, dos conceitos, das palavras, das cores, dos significados, dos sentidos.

Ganhamos as eleições, mas agora é hora de ganhar a política e os valores. Um valor fundamental a ser disputado é o valor país, o valor nação, o valor bandeira. A utilização por Bolsonaro dos símbolos nacionais foi asquerosa e foram anos demais nessa espiral de asquerosidade. É humilhante chegar ao ponto de ver no guarda-roupa uma roupa amarela e sentir desconforto.  Não é possível a gente continuar a sentir repugnância ao ver a bandeira brasileira. Não dá mais. Os símbolos do País não são deles. Eles agem como donos incontestáveis, “os verdadeiros patriotas”, como únicos proprietários, senhores e patrões da estética nacional, pois nós não somos cidadãos, não somos homens e mulheres de bem, a nós não pertence a bandeira ou o hino, só eles são dignos, nós somos a imundície. Pois, queridos, essa imundície ganhou as eleições e vai se enrolar em bandeiras brasileiras, como se enrolou em vermelhas, e vai vestir camisetas verde-amarelas. E vai acontecer na frente de vocês.

Eu sei que a vontade de seguir esse caminho para muitos de nós é zero, até negativa, mas necessária. A disputa dos símbolos é uma parte fundamental da batalha política e, infelizmente, durante muito tempo a gente não soube travar essa batalha. Agora temos de deixar evidente que a bandeira também é nossa, dos esquerdopatas, dos petralhas, a bandeira também é das mulheres que não são “belas, recatadas e do lar”, é dos nordestinos, dos homens que não se sujeitam a uma masculinidade violenta, dos negros considerados criminosos e carne de masmorra ou cemitério, dos indígenas, dos ribeirinhos, dos quilombolas. A bandeira, o verde-amarelo, também é de todos aqueles que eles desprezam.

Não é para se esconder, é para ostentar, se deixar ver, se exibir com orgulho… e com inteligência. Ganhamos nas urnas, mas ainda faltam muitas vitórias e ainda poderemos ter muitas derrotas. No seu discurso de vitória, Lula falou em unidade nacional, em reconstrução de um país dividido, em esperança, em cuidado, em amor. Disse que seria o presidente de todos. Perfeito. Mas, para tanto, a gente tem de se apropriar deste “país de todos” perante o “país de alguns”. No país deles não cabe quase ninguém, porque eles detestam as diferenças. No nosso país só não são bem-vindos os fascistas, mas no nosso país cabe muita gente, tem de caber muita gente, cabem os que votaram em Bolsonaro, mas não são fascistas (ou seja, a maioria), os que votaram em Bolsonaro, mas podem vir para a democracia, os que votaram em Bolsonaro, mas não são movidos pelo ódio, pelo aniquilamento. Cabem aqueles que votaram em Bolsonaro por inúmeras razões, mas não são perversos. É urgente que no nosso país, na nossa bandeira, caiba todo aquele que quer conviver, pois é preciso recomeçar muita coisa.

É isso, a bandeira não é mais deles. O verde-amarelo não é mais deles. O País não é mais deles. O futuro não é mais deles. O orgulho de sair às ruas não é mais deles. Agora também é nosso.

Na quinta-feira 24, estarei no barzinho perto de casa. Pacote completo, com marido e filho. Todos de verde-amarelo, de vuvuzela estrondosa, todos a vibrar pelo Brasil e torcendo para recuperar parte do que nos foi roubado, porque nos foi roubado tanto que temos de recuperar cada pedaço. Não vai ser fácil, mas é preciso começar. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1235 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE NOVEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A camisa é nossa “

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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