Maria Rita Kehl

Opinião

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Legalize já

As substâncias ilícitas são mais nocivas que o álcool e o tabaco? O que dizer, então, das terríveis consequências da guerra às drogas?

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Leio na Folha de S.Paulo que o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, pretende debater, no Conselho Nacional de Justiça, uma política pública sobre drogas. “Penso em organizar um grande evento para nós repensarmos a questão da segurança pública e das drogas no Brasil, sem preconceito, sem superstição, com criatividade, com originalidade”, afirmou durante o Fórum Econômico Mundial, em Davos, no qual participou de um painel sobre os desafios da América Latina.

Achei genial a escolha das palavras. É realmente importante incluir “criatividade” e “originalidade” no debate de um assunto que costuma ser tratado apenas pelo viés da repressão policial. O ministro esclarece que seu objetivo não é propor a descriminalização das drogas, e sim discutir a questão. Já é um passo importante. Presentes neste mesmo evento em Davos, o presidente da Colômbia, Gustavo Petro, e a ministra das Relações Exteriores do Equador, Gabriela Sommerfeld, também se mostraram dispostos a repensar o modelo de “guerra às drogas” em seus países.

A questão do consumo de drogas ilícitas deveria ser considerada pela perspectiva da saúde pública, e não da polícia. Em primeiro lugar, deveríamos nos perguntar se as substâncias proibidas, como a maconha, são mais prejudicais à saúde física e mental do que o tabaco e o álcool, drogas legalizadas e de oferta abundante. Esta última ameaça o usuário com cirrose e doenças hepáticas. Além disso, sob efeito do álcool, os motoristas correm muito mais riscos de matar ou morrer por barbeiragens no trânsito.

Deveríamos, então, proibir a venda e o consumo? Nos EUA dos anos 1920, a Lei Seca provocou o surgimento de gangues de traficantes, além de incontáveis produtores ilegais de bebidas alcoólicas destiladas. Esse comércio clandestino é apontado como o embrião das máfias que assolaram o país nas décadas seguintes. Na prática, as sangrentas disputas travadas entre mafiosos e organizações criminosas rivais causaram muito mais problemas de “saúde pública”, como as epidêmicas taxas de homicídios por arma de fogo, do que o mal produzido pelo consumo de álcool. A proibição foi um fracasso estrondoso: hoje, essa indústria é a quinta maior do país.

Novas drogas são continuamente inventadas, um fenômeno que prova, da maneira mais perigosa, que nem só de água e chocolate quente vive o homem.  Vejam o exemplo do perigosíssimo crack, que degrada gravemente a saúde dos usuários, relegados à exclusão social. Há mais de 30 anos, os governos municipal e estadual apostam em ações repressivas para tentar eliminar a Cracolândia de São Paulo, mas a atuação policialesca apenas força o deslocamento dos dependentes químicos de um ponto a outro no Centro, como se fossem zumbis que precisam ser varridos da paisagem urbana.

Vale lembrar que, somente na gestão do petista Fernando Haddad na prefeitura, se tentou uma abordagem diferente. O programa De Braços Abertos ofereceu moradia, trabalho e tratamento aos dependentes químicos. Psicólogos foram colocados à disposição de pessoas em situação de rua, para que eles tivessem ao menos uma chance de superar o vício. Infelizmente, a experiência durou pouco, apenas três anos. Foi abortada pelo seu sucessor, o tucano João ­Doria, que voltou a insistir na fracassada política repressiva.

Bem, comecei com a inocente maconha e acabei no crack. Não porque uma droga leve à outra, mas porque ao se debater o caso de uma delas é preciso levar as outras em consideração. Defendo a descriminalização das drogas para que o problema da dependência seja tratado como uma questão de saúde pública, e não um caso de polícia. Nada do que escrevi aqui é de meu interesse particular. Minha pressão é normalmente tão baixa que, nas duas vezes em que tentei fumar a inocente erva, tive angustiantes bad trips.

Convém ressaltar ainda que os cigarros são os principais agentes causadores de câncer de pulmão, entre outras moléstias. No Brasil, estima-se que 16 mil fumantes morrem anualmente em decorrência de doenças associadas ao consumo de tabaco. Mas circulam livremente por aí, para uso de quem quiser, gerando grandes lucros para a indústria tabagista.

Sim, esse vício gera grandes lucros. Ora, como fui me esquecer deles? •

Publicado na edição n° 1296 de CartaCapital, em 07 de fevereiro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Legalize já’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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