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Melancólica despedida

A prefeitura de São Paulo fecha o último hotel remanescente do programa De Braços Abertos

Redenção. Cleiton Ferreira, o Dentinho, morou por oito anos na pensão, onde conseguiu superar a dependência química e viver com dignidade – Imagem: Renato Luiz Ferreira
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“Por oito anos, tive um CEP na Rua do Triunfo. Por mais que fosse uma moradia provisória, eu tinha um endereço fixo. Fui realocado em outro espaço na Praça da República, mas lá tenho hora para entrar e sair e não posso deixar os meus pertences”, lamenta Cleiton Ferreira, despejado do hotel New Luz na sexta-feira 10, quando a Vigilância Sanitária lacrou as portas da pensão que, por quase uma década, acolheu frequentadores da Cracolândia paulistana. O espaço era o último hotel social remanescente do programa De Braços Abertos, que, inspirado nas bem-sucedidas experiências internacionais como o housing first, oferecia moradia, trabalho e tratamento a dependentes químicos sem exigir, como contrapartida, abstinência completa.

O programa foi lançado em 2014 pelo então prefeito Fernando Haddad, do PT, mas durou pouco, apenas três anos. Sucessor do petista na administração municipal, o tucano João Doria incumbiu-se da missão de derrubar a maior parte das pensões existentes na região da Cracolândia, tanto as que abrigavam dependentes químicos com recursos da prefeitura quanto as que ofereciam uma alternativa de moradia barata aos trabalhadores do Centro. Parte das depauperadas edificações também oferecia refúgio a traficantes de drogas, justificativa utilizada para as demolições, que abriram espaço para grandes empreendimentos imobiliários. Poucos hotéis sociais do De Braços Abertos permaneceram ativos. O emedebista Ricardo Nunes cuidou de lançar a pedra final. Ou melhor, um bloco de concreto, semelhante ao que hoje impede o acesso dos antigos moradores do New Luz.

No passado, a Rua do Triunfo chegou a abrigar o principal núcleo cinematográfico do País. Em meio à malandragem e à prostituição que rodeavam as antigas estações ferroviárias da Luz e Sorocabana, circulavam diretores, atores e roteiristas renomados. Hoje, o local é um símbolo da degradação do Centro de São Paulo. Antigos palacetes dos anos 1920 foram ocupados por trabalhadores sem-teto. Os estúdios foram transformados em depósitos, estacionamentos e comércios à beira da falência. Mas a vida ainda pulsa no logradouro, e Cleiton Ferreira é um bom exemplo. Aos 44 anos, Dentinho, como é conhecido, reinventou-se e hoje trabalha como agente de redução de danos no Centro de Convivência É de Lei, além de ser ator e artista plástico.

Em uma caminhada pela região, três dias após o despejo, Dentinho reencontra antigos vizinhos. Descobre que Alceri e Denis voltaram a viver em situação de rua. Combinam de manter contato, para tentar buscar um novo espaço. No hotel, que chegou a abrigar 55 pessoas no início do projeto, ainda viviam 13 hóspedes. Destes, apenas seis foram realocados em novas moradias, informou a prefeitura por meio de nota. “A Vida era uma senhora que mantinha contato com a família, as netas dela vinham visitá-la aqui de vez em quando. Desde sexta, não sabemos onde ela está.”

A Vigilância Sanitária alega que o espaço estava impróprio para habitação. “Claro que estava degradado. Desde 2017, a prefeitura não fazia manutenção alguma”, denuncia Malu Gama, assessora da vereadora petista Luna ­Zaratini, que acompanhou a retirada dos moradores. No edifício de dois andares, ficaram para trás objetos que não puderam ser levados, devido à pressa da polícia em executar a ordem de despejo, comunicada na noite anterior. Um dos quartos seguia com um pôster dos Beatles na parede. Em outro, havia uma sacola com roupas. “Vi muitas pessoas se transformarem aqui. Alguns chegaram sem nem lembrar como se usava um banheiro, depois de tantos anos morando na rua. Vários conseguiram afastar-se das drogas e se estabelecer num trabalho”, relata o dono da pensão, José dos Anjos Oliveira. “Aqui, eles eram livres, entravam e saíam quando queriam. O afastamento das drogas veio de forma natural, com acompanhamento psicológico.”

A maior parte dos desalojados voltou a viver em situação de rua

Foi o que aconteceu com Dentinho. Aos 30 anos, ele estava sem trabalho e sem perspectivas, afundado em depressão pela morte da mãe. Vivia na casa de familiares, mas começou a abusar de substâncias químicas e a convivência tornou-se cada vez mais difícil. “Minha droga sempre foi o álcool. Depois, vieram a cocaína e todo o resto”, diz o artista, que dormiu debaixo das marquises paulistanas por dois anos. Frequentador da Cracolândia, ficou cego de um olho durante uma violenta dispersão dos usuários de drogas pela Polícia Militar. Uma bomba estourou próxima ao rosto dele.

Hoje, Dentinho continua frequentando o fluxo, mas para tentar resgatar outras pessoas da dependência química. Caminha com tranquilidade e firmeza, e se orgulha de conhecer o centro histórico como a palma da mão. “O problema não é o uso da droga em si, mas a pobreza. Tentam apagar do mapa um lugar onde vivem milhares de pessoas, como se não existisse vida aqui.” Do New Luz o artista guarda boas e más recordações. “No começo, foi complicado. Muitas pessoas convivendo num mesmo espaço gera conflitos”. Ao conquistar um quarto próprio, a situação melhorou significativamente. Dentinho tinha de tudo: tevê, air fryer, micro-ondas, notebook para trabalhar de casa, uma cama e muitos livros. Apaixonado por HQs e jogos, recorda-se com alegria do dia em que conseguiu comprar um videogame. “Guardo a nota fiscal de tudo, para não ser acusado pela polícia de receptação.”

Filho de um trabalhador da construção civil e uma dona de casa vindos do interior da Bahia, Dentinho enfrenta dificuldades desde a infância. Queria ser dançarino, mas o pai dizia que o Axé não era “coisa de homem”. “Uma criança preta, pobre, com um óculos fundo de garrafa e os dentes tortos não se sente bem em lugar nenhum, mas na dança me sentia confiante”, recorda. Nos anos de rua, conseguia algum dinheiro com livros usados. “Comprava nos sebos e revendia na Avenida Paulista, ou aqui no fluxo mesmo.”

A partir do Centro de Convivência É de Lei, foi convidado a integrar um projeto de pesquisa da Unifesp sobre “vulnerabilidades e reinvenções na pandemia de Covid-19”. A coordenadora do estudo, Nana Foster, recorda com carinho a chegada de Dentinho. “Ele trouxe um olhar que nenhum pesquisador da universidade conseguiria ter, era nosso interlocutor com o território.” Sem endereço fixo, Dentinho agora guarda seus pertences no Centro É de Lei e na casa de amigos. “A prefeitura quer que minha vida caiba numa mochila, enquanto tudo que eu mais quero é ter estabilidade, conquistar minha casa, ter um espaço para cozinhar e receber meus amigos.” •

Publicado na edição n° 1286 de CartaCapital, em 22 de novembro de 2023.

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