Educação

assine e leia

Jovens radicalizados

Precisamos decifrar o que está na raiz dos recorrentes ataques em escolas protagonizados por adolescentes

Jovens radicalizados
Jovens radicalizados
Apoie Siga-nos no

Mais do que os adultos e muito mais do que as crianças, são os adolescentes que nos revelam aquilo que os alemães chamam de zeitgeist: o espírito da época. Recentemente, li com consternação uma reportagem na Folha de S.Paulo, informando que o Laboratório de Operações Cibernéticas, o Ciberlab, vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, monitora 15 grupos de jovens radicalizados. Não se trata exatamente de uma radicalização política. Os meninos estão dispostos a promover ataques nas escolas, contra colegas, professores e outros profissionais da educação. Em alguns casos, a violência transborda para as ruas, como nos episódios em que adolescentes atearam fogo em pessoas em situação de rua, quando elas estavam dormindo sobre as calçadas.

Os ataques em escolas brasileiras tornaram-se recorrentes nos últimos anos, assim como as notícias de adolescentes envolvidos na prática do cyberbullying, causando grave sofrimento psíquico a outros jovens. As maldades não mais são praticadas apenas “ao vivo”, quando uma testemunha ou a própria vítima podem eventualmente reagir. Na terra sem lei das redes sociais, é fácil humilhar, de forma sistemática e anônima, uma pessoa, a ponto de induzir a vítima ao suicídio. Quando teremos um marco regulador realmente eficaz, capaz de evitar a repetição dessas tragédias?

A passagem da infância para a adolescência não é fácil. Essa transição exige que, de uma hora para outra, a criança se desfaça de suas fantasias e de sua ingenuidade. Queira ou não, ela é compelida a improvisar em um território desconhecido, regido por outras normas. Precisam desenvolver certa dose de malícia, quando não de maldade, para descolar-se da infância e transpor o limiar de uma etapa nova, desde onde se vislumbra seu dever como adulto. Vulneráveis e apavorados com a possibilidade de passar por ridículos, muitos adolescentes tentam criar uma “fama de mau”, a mesma que Erasmo Carlos teria cultivado na época da Jovem Guarda e, segundo amigos mais próximos, jamais correspondeu com a realidade. No fim vida, por sinal, o cantor acabou reconhecido como um “Gigante Gentil”, o exato oposto de sua fama durante a juventude.

Lamentavelmente, o ambiente social é propício à radicalização dos adolescentes. Durante quatro anos, o País foi governado por um incitador da violência. Fã de torturadores da ditadura, o então deputado Jair Bolsonaro chegou a dizer que não estupraria uma colega parlamentar porque ela era “muito feia”. Durante a campanha à Presidência da República em 2018, transformou em sua marca registrada a brincadeirinha de simular revólveres com o polegar e o indicador. Uma vez instalado no poder, cumpriu a promessa de liberar armas de fogo para a população civil, enquanto insuflava seus radicais apoiadores para executar um golpe de Estado, recitado em verso e prosa, inclusive em eventos oficiais, desde que Lula recuperou os direitos políticos e passou a liderar as pesquisas de intenção de voto. O 8 de Janeiro prova que não se tratava de blefe.

O agressivo discurso do presidente resultou em graves episódios de violência política entre os “cidadãos comuns”. Talvez o caso mais emblemático seja o do assassinato do guarda municipal e militante petista Marcelo Arruda, abatido a tiros pelo ex-policial penal bolsonarista Jorge Guaranho, em julho de 2022, em Foz do Iguaçu. O crime ocorreu na festa de aniversário da vítima, que acabara de completar 50 anos. O júri estava previsto para começar na quinta-feira 2, mas a defesa do réu conseguiu, por meio de liminar, adiar o julgamento novamente. À época do homicídio, Bolsonaro buscou esquivar-se de qualquer responsabilidade: “O que eu tenho a ver?”

Muitas vezes a empáfia de certos adultos impele o adolescente a rejeitar, cada vez com mais veemência, as doçuras da infância. Para convencer a si próprio e a outros jovens de que ele já não é mais um “otário”, o adolescente se embebe de uma farta dose de malícia, mas também de maldade. Os alvos dessa perversidade não costumam ser os adultos ou os irmãos menores. São outros adolescentes, de preferência mais ingênuos do que ele. Ou, o que é pior, mais pobres do que ele.

Fazer um semelhante passar por otário é visto como um trunfo. Para não revelar ingenuidade, o jovem assustado com a violência que grassa ao seu redor torna-se mais malvado do que ele mesmo imaginava. E cada nova geração empenha-se em se mostrar ainda mais malvada que a anterior. •

Publicado na edição n° 1309 de CartaCapital, em 08 de maio de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Jovens radicalizados’

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo