Opinião

Intervenção de Bolsonaro lesou a Petrobras

‘A riqueza humana da empresa será sepultada, destruída, negada, jamais poderá sequer ser avaliada’, escreve Milton Rondó

Fotos: Evaristo Sá/AFP e Tânia Rêgo/Agência Brasil
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“Se pensar que jamais seja justificável uma parada no caminho da maior compreensão, está ainda muito longe da verdade. A vida que nós recebemos nos foi dada não para que simplesmente a admiremos, mas para que estejamos sempre à procura de uma verdade escondida dentro de nós.”
John Milton.

O poeta, ator, escritor, dramaturgo, roteirista e diretor de teatro, Antonin Artaud, dizia: “O ser humano tem muitos estados e um mais perigoso do que o outro.”

O teatrólogo francês foi internado várias vezes em manicômios e neles foi submetido a sessões de eletrochoques. Ele dizia que após isso, sentia-se nulo, como se seu cérebro e sua vontade tivessem sido apagadas, dissolvidas.

No século passado, essa “terapia” foi largamente utilizada em hospitais psiquiátricos, embora o método – sem resultados desejáveis – fosse de evidente brutalidade e violência.

Não gerou surpresa, mas perplexidade, que o general pesadelo, ministro ilegítimo da saúde, do governo ilegítimo resultante de golpe militar, indicasse para ser coordenador de saúde mental do desclassificado ministério um defensor dessa prática, que guarda mais relação com a tortura – como é notório, defendida pelo genocida presidente – do que com a medicina, propriamente dita.

Quão difícil é para os autoritários respeitarem a subjetividade alheia. Na verdade, negam-na por completo, seja porque seu “universo” é pobre, monocórdico e monocromático, seja porque temem a arqueologia das próprias almas e seus estados cada vez mais profundos, arquetípicos, coletivos.

Como irei demonizar o outro se eu aceitar que somos partes de um mesmo inconsciente coletivo, “Irmãos Todos”, título e tema da iluminada encíclica do Papa Francisco?

Com Leonardo Boff, recordemos que a separação é demoníaca; a união, divina, fruto do Amor.

No limite, as guerras seriam, por conseguinte, deslegitimadas, assim como, em grande parte, os militares e os policiais, ao menos nas funções atuais, em que preponderam o controle ideológico, social e econômico da própria população.

O grande Lima Barreto, arguto cronista, que também viveu no século XX, foi internado várias vezes no antigo Hospital Neurosífilis, cujo prédio atualmente pertence à Universidade Federal do Rio de Janeiro, construção histórica da Urca, que recebera, a seu tempo, Ruben Dario, maior poeta nicaraguense e um dos mais importantes da Língua Espanhola.

Em “Lima Barreto e a Política”, com organização, introdução e notas de Mauro Rosso, editado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio e pela Edições Loyola, edição que contém os “contos argelinos” e outros textos recuperados, Rosso aclara: “Sob a rubrica de crítica política, há de se realçar que os ‘contos argelinos’ vão muito além dos demais contos similares na temática, por se verterem em oposição implícita ao militarismo e à ascensão (institucional, política e como classe social) dos militares – denunciando, entre outros aspectos, ‘o modo covarde e mesquinho pelo qual as elites políticas, econômicas e oligárquicas vão capitulando diante de pressões militares”.

Em um dos “contos argelinos”, Intitulado “Sua Alteza Imperial Jan-Ghothe”, Lima Barreto, com um século de antecedência, visualiza à perfeição o atual inquilino usurpador do Planalto: “Abu-Al-Dhudut gozava placidamente o trono do país de Al-Patak, que ele tinha usurpado da maneira mais inconcebível. Sabia que era impopular, que o povo ridicularizava com canções satíricas a sua pessoa desgraciosa e proclamava também os seus méritos intelectuais com anedotas hilariantes. Isto, porém, não o aborrecia, porque, tendo a mesa farta, um harém sortido e sobretudo honras das tropas, dos caids e presentes dos príncipes estrangeiros, ele se satisfazia e se julgava um grande sultão igual àqueles que ilustravam o trono de Al-Patak”.

Poderia haver retrato mais perfeito da corte que circunda o genocida que nos desgoverna?

Descrita Brasília, vamos ao Rio de Janeiro: “A capital do Estado ficou assim entregue aos malfeitores que, não contentes com a espórtula que recebiam do chefe de polícia – kaia – extorquiam, sob ameaça, dinheiro aos mercadores.” Uma fotografia, avant la lettre, literalmente, das milícias cariocas, curral eleitoral do fascista mor.

Sobre a forma de se utilizar do Estado para se locupletar e à própria familícia prevê Lima Barreto: “Para os cargos do governo, para os principados vassalos, ele nomeava parentes obscuros e sem saber…O povo de Al-Patak é manso e ordeiro…Não contava, portanto, com nenhum levante do povo e passava a vida na mesa e no harém, em passeios e festas, sem cuidados nem incômodos. Os seus parentes também levavam a vida da mesma forma, tanto mais que haviam ficado ricos com as riquezas do Estado e com os presentes que recebiam em troca de proteção a este ou àquele.”

Não ousem, porém, meus compatriotas paulistas aventarem a hipótese de se sentirem superiores ou estarem na plateia dessa radiografia política infensa ao tempo. Em “A firmeza de Al-Bandeirah” (o paródia nada sutil do toponímico denuncia o que viria): “O povo dessa província pôs-se como uma só pessoa ao lado dos oligarcas que o governavam com muita habilidade e tal era esta que ninguém podia supor que o que eles defendiam eram os seus interesses particulares de donos de bancos, de chefes de casas comerciais, de proprietários de minas e fábricas, de ricos cultivadores de tâmaras” (leia-se café, no caso da província paulista).

Perto do que perderemos em humanidade com o novo médico-monstro na descoordenação da saúde mental do ministério da doença, da pandemia, os 28 bilhões em que a Petrobras acaba de ser lesada com a intervenção do Planalto e os 100 bi totais que deverão subtraídos da empresa, por conta daquela arbitrariedade, são, ainda assim, pouco, pois a riqueza humana que será sepultada, destruída, negada, jamais poderá sequer ser avaliada. Lutemos, portanto.

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