

Opinião
Independência online
Nossa soberania, inegociável, se estende ao mundo virtual


Chegamos à celebração do 7 de Setembro diante de um episódio emblemático para reforçar o Dia da Independência do Brasil. A decisão unânime da 1ª turma do Supremo Tribunal Federal de suspender a rede social X no País carrega uma mensagem contundente: nossa soberania se estende ao mundo virtual.
No ano passado, recuperamos os princípios originais da data, maculados no período anterior por um olhar enviesado e temeroso a respeito do que significam os termos soberania, liberdade e autodeterminação dos povos, a ponto de terem servido a devaneios autoritários em meio a atritos crescentes entre os Poderes, o que, definitivamente, não combina com a democracia.
Agora, a ameaça a ser debelada vem de fora, a partir do uso inescrupuloso de uma rede social cujo proprietário, um bilionário sul-africano radicado nos Estados Unidos, age como se por aqui não houvesse uma nação constituída. Ao contrário do que insistem em dizer os bajuladores de plantão, o tema está a anos-luz de um debate sobre liberdade de expressão, censura ou algo parecido. Trata-se do respeito às leis, à Constituição, à soberania nacional e, sempre, à independência.
A decisão do STF, portanto, transmite uma lição educativa. Costumo dizer que a democracia é o império da lei. Como nação soberana, nossas leis devem ser respeitadas por qualquer pessoa, física ou jurídica, brasileira ou não, bilionária ou não. Como bem colocou o presidente Lula sobre o caso, “a Justiça brasileira pode ter dado um importante sinal de que o mundo não é obrigado a aguentar esse vale-tudo da extrema-direita nem permitir que bilionário passe por cima da nossa Constituição”.
Estou seguro de que, se a Suprema Corte norte-americana exigisse a retirada de perfis do ar da rede em questão, dificilmente Elon Musk ou qualquer outro empresário contestariam. Uma coisa é fazer crítica à decisão, mas não tem nenhum sentido deixar de cumpri-la. O Brasil não é terra de ninguém, não é terra sem lei.
Ao proferir seu voto, a ministra Cármen Lúcia, do STF, foi assertiva: “Um brasileiro poderia atuar em qualquer outro Estado soberano desprezando e descumprindo seu ordenamento jurídico e as ordens judiciais exaradas pelos seus respectivos juízes?”. Aqui, o “não” é a única resposta possível.
Neste sentido, é sintomático e revelador o modo como o X se comportou na relação com a Justiça em outros países, numa prova de que o problema de fundo está longe de ser uma simples desobediência civil, mas muito perto de ser uma afronta ideológica a serviço de ideais da extrema-direita e de interesses econômicos. Na Turquia, o X acatou sem qualquer contestação uma ordem da Justiça para restringir contas contrárias ao governo dois dias antes da reeleição do presidente Recep Erdogan, em 2023. De igual maneira, na Índia, bloqueou links para um documentário com críticas ao primeiro-ministro Narendra Modi. Nas duas situações, o proprietário da rede social, calçado por seus apoiadores, não interpretou os episódios como ataques à liberdade de expressão.
A rede também foi processada na Austrália e obedeceu à ordem judicial de retirar do ar conteúdos vinculados a ataques violentos cometidos em Sydney. Além disso, desde o ano passado, o X é investigado na União Europeia e corre o risco de banimento por suposta violação às regras de compartilhamento de conteúdo ilegal e desinformação.
Episódios como esse servem para lembrar que nossa jovem democracia foi conquistada após uma longa luta contra o autoritarismo, superando 21 anos de ditadura, e que a estabilidade democrática ainda está por vir e depende do esforço diário de todos nós, haja vista o lamentável ataque de 8 de janeiro de 2023.
Gosto sempre de enfatizar que, para todo 7 de Setembro, há um 2 de Julho em seguida. Isso porque o Grito de Independência não bastou para que o Brasil superasse a condição de colônia. A verdadeira liberdade só foi realmente conquistada quase um ano depois, em 1823, na Bahia. Esta sim foi uma vitória determinante para a unificação e concepção da nação brasileira.
A suspensão do X por desrespeito à legislação tem, portanto, caráter pedagógico. É uma advertência de que o Brasil não tolera práticas abusivas e uma defesa veemente das leis brasileiras, alicerces da nossa democracia. A decisão da Corte brasileira consolida o entendimento de que os princípios da independência, da liberdade, da autodeterminação e da soberania se aplicam também na vida online.
Seguiremos lutando o tempo que for necessário para garantir uma nação cada vez mais forte, mais pujante, mais justa e mais solidária, com oportunidades iguais para todos e todas. Para isso, não podemos abrir espaço para aventuras que ameacem tudo o que foi e tem sido conquistado, a duras penas. Independência e soberania são pilares inegociáveis da democracia. •
Publicado na edição n° 1327 de CartaCapital, em 11 de setembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Independência online’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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