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Herança maldita

A Suprema Corte não pode mais se furtar a revisar os acordos de leniência lavajatistas, maculados por numerosos excessos e abusos

E os artífices do caos acabaram premiados com assentos no Congresso Nacional – Imagem: Jefferson Rudy/Ag.Senado
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A vulgarmente conhecida como Operação Lava Jato, a pretexto de combater a corrupção, destruiu mercados estruturantes da economia, fontes de emprego e renda. O custo social e o efeito devastador para a infraestrutura nacional exigem que, em resposta aos severos desarranjos na economia e ao atrofiamento das cadeias produtivas de setores estratégicos, reconheçamos e desfaçamos heranças malditas.

O impacto da Lava Jato para o Produto Interno Bruto foi estimado pela GO Consultoria na ordem de 3,4%. Ou seja, aproximadamente, 190 bilhões de reais em riquezas foram para o ralo em nome de pouco mais de 10 bilhões que se esperava recuperar no chamado “combate” à corrupção.

O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), em parceria com a Central Única dos Trabalhadores (CUT), estimou que a operação foi responsável pela extinção de 4,4 milhões de postos de trabalho. Destaquem-se, ainda, as preocupantes estimativas realizadas pelo Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis sobre a severa fragilização da indústria petrolífera e da sua cadeia de fornecedores.

É nessa terra arrasada pós-Lava Jato que o Estado brasileiro – Estado administração e Estado jurisdição, inclusive – deve assumir responsabilidades constitucionais prementes. O governo Lula vem, corajosamente, respondendo à altura dos referidos desafios. Noticia-se, inclusive, que em breve será lançado um ousado programa de retomada da infraestrutura nos moldes do bem-sucedido Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

Concomitantemente aos cem primeiros dias de resgate do compromisso com o desenvolvimento social e econômico pelo governo federal, o PSOL, o Solidariedade e o PCdoB propuseram a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental de nº 1.051 para, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, tratar dos acordos de leniência celebrados entre o Estado brasileiro e as empresas no curso da Lava Jato [Nota: Pedro Serrano, o autor do texto, é um dos subscritores da ação].

Objetiva-se, em especial, preservar as autocomposições anticorrupção, mas revisar, pela técnica da interpretação conforme a Constituição, as pesadas e inexequíveis obrigações pecuniárias assumidas pelas empresas. A anormalidade jurídico-institucional lavajatista fez com que as companhias assumissem compromissos pecuniários estratosféricos que prejudicam severamente a própria sobrevivência, contrariando a própria lógica que inspira o instituto da leniência.

Nos autos da referida ação são questionados, acertadamente, os critérios adotados na quantificação de multas e de ressarcimento ao Erário, além da atuação institucional, por parte de agentes estatais, baseada na coação e no desvio de finalidade. As empresas colaboradoras, imbuídas de vício de consentimento, foram forçadas a celebrar acordos de leniência. A turbação à livre e desembaraçada vontade concretizou-se, inclusive, pelo uso de instrumentos de persecução penal em face de pessoas físicas – especialmente prisões preventivas, mas também buscas e apreensões e conduções coercitivas – para constranger pessoas jurídicas aos acordos.

Para recuperar 10 bilhões de reais desviados da Petrobras, a República de Curitiba causou um rombo de 190 bilhões na economia, estima a GO Consultoria

A jornalista Malu Gaspar, no livro A Organização, exemplificou o cenário de violência institucional que permeou a celebração dos acordos de leniência ao, em especial, descrever uma fala do Procurador da República Carlos Fernando dos Santos Lima aos advogados que ali estavam para iniciar as tratativas autocompositivas: “Se a negociação com a Camargo Corrêa foi um embate entre judeus e palestinos, com a Odebrecht será como se os sobreviventes do Holocausto estivessem negociando com os soldados da Gestapo”. O que esperar de acordos entabulados nesse cenário?

O efeito devastador para a infraestrutura nacional fica evidenciado quando se constata que recentes licitações foram vencidas por fundos de investimento transnacionais desprovidos de qualquer capacidade técnica. Ademais, o desmantelamento do mercado doméstico de infraestrutura coloca em intenso risco o próprio interesse do Estado brasileiro enquanto credor. Só paga quem está vivo. Portanto, a preservação da empresa é fundamental para a própria incolumidade do Erário.

O olhar para o futuro pressupõe o reconhecimento dos nossos fracassos. O avanço na prevenção, na investigação e na repressão da corrupção no Brasil requer que olhemos para o passado e, reconhecendo a falibilidade das nossas instituições e dos efeitos deletérios da oportunista substituição do código próprio do Direito para outro eminentemente de exceção, que os acordos de leniência sejam revistos.

É preciso que tais avenças se sujeitem ao escrutínio da nossa jurisdição constitucional, de modo a se compatibilizarem com os preceitos fundamentais violados pelos senhores do punitivismo.

Desfaçamos a herança maldita dos acordos de leniência lavajatistas. A jurisdição constitucional brasileira é importante instância de escrutínio e correção, em sede de controle de constitucionalidade, dos abusos e dos excessos do punitivismo.

A força contramajoritária da jurisdição constitucional, para além de tutelar a projeção da liberdade individual no plano da produção e de apropriação, deve atuar em nome da proteção dos valores sociais do trabalho e da erradicação da pobreza, da marginalização e das desigualdades. Isto é, não se trata de tutelar meros direitos subjetivos de companhias colaboradoras, mas a geração e a circulação de riquezas por elas propiciadas. •

Publicado na edição n° 1254 de CartaCapital, em 12 de abril de 2023.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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