“Vocês que fazem parte dessa massa, que passa nos projetos do futuro;
é duro tanto ter que caminhar e dar muito mais do que receber.
E ter que demonstrar sua coragem à margem do que possa parecer.
E ver que toda essa engrenagem já sente a ferrugem lhe comer.
Eh ôô vida de gado, povo marcado ê povo feliz”.
– Zé Ramalho
Por Valdete Souto Severo
Há bem pouco tempo atrás, a greve era oficialmente um caso de polícia. A resposta estatal sempre foi a mesma: repressão aos movimentos de resistência[1].
Com a promulgação da Constituição de 1988 há uma mudança de discurso: pela primeira vez a greve figura como direito fundamental dos trabalhadores e trabalhadoras, tanto do setor privado quanto público. Mas, como bem sabemos, a cultura não se altera por decreto, nem por texto constitucional…
A forma como esse direito ainda hoje é tratado pelo Estado, seja através da repressão policial[2], seja por meio de decisões judiciais, revela que ainda não compreendemos a extensão do reconhecimento de que o exercício de resistência é fundamento de um viver democrático. Ou então, revela o que insistimos em não enxergar: a dificuldade que uma sociedade capitalista tem de conviver com práticas verdadeiramente democráticas, especialmente quando exercidas pela classe trabalhadora.
A importância do texto constitucional não está apenas em reconhecer o caráter fundamental do direito de greve, mas sobretudo em estabelecer textualmente que são as trabalhadoras e os trabalhadores que detêm a faculdade de decidir sobre a oportunidade de seu exercício e os interesses a serem por meio dela defendidos.
Em Nota Pública datada de 26 de abril de 2017, o Ministério Público do Trabalho reconhece expressamente a possibilidade de realização de greve política, pois se à classe trabalhadora compete decidir sobre os interesses que queira defender através da mobilização coletiva, nada impede que tais interesses extrapolem o âmbito das questões econômicas ou diretamente relacionadas a determinado grupo de trabalhadores e atinjam a coletividade[3].
O conteúdo dessa Nota Pública torna-se ainda mais relevante diante do que vem ocorrendo com o direito de greve nos últimos anos e o exemplo mais recente é o da decisão proferida pelo TST ainda este mês. A Seção Especializada em Dissídios Coletivos do Tribunal Superior do Trabalho considerou abusiva a greve das empregadas e empregados das empresas que compõem a Eletrobrás.
A paralização foi realizada em junho de 2018, contra o anúncio da privatização do setor elétrico. Na sessão do dia 11/2/2019, prevaleceu o entendimento de que a greve, por não se dirigir diretamente contra algum ato do empregador no ambiente de trabalho, teve caráter político, sendo, portanto, abusiva[4].
A ideia de que greve contra privatização é abusiva parte, aqui, de dois pressupostos. Primeiro, de que não há direito à greve política. Segundo, de que a greve contra a venda de estatais à iniciativa privada não se caracteriza como greve por condições de trabalho.
Na demanda acima referida, o TST acabou acolhendo, por maioria, o voto divergente do Ministro Ives Gandra Martins Filho, para quem – segundo notícia veiculada no site do TST – “greve legítima é apenas a que trata de direitos que se pretendem ver respeitados ou criados, como reajuste salarial ou vantagens diversas”[5]. É de ver de onde foi retirado esse conceito de greve, já que a Constituição e a lei que rege o instituto nada dizem nesse sentido.
O artigo 9º da Constituição de 1988 diz expressamente que compete “aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender”. Portanto, não parece haver vedação constitucional à realização de greve política.
É interessante observar que a lei de greve aprovada durante o período da ditadura militar expressamente dispunha sobre a ilicitude de greve deflagrada por motivos políticos[6]. A Lei 7.783/1989 não reproduz o texto da lei anterior. Ao contrário, repete textualmente (como se isso fosse necessário) o texto constitucional:
“Art. 1º É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender”.
Portanto, é difícil encontrar fundamento na legislação vigente, para concluir seja uma greve abusiva em razão do interesse eleito pela classe trabalhadora, para por meio dela defender, ainda que esse interesse seja político e não estritamente econômico.
Até porque além da legislação vigente e do texto expresso da Constituição, as Convenções da OIT, acerca da liberdade sindical, caminham no mesmo sentido: não-intervenção do Estado nas escolhas de luta coletiva, por parte da classe trabalhadora[7].
No caso da decisão proferida pelo TST, porém, ainda é preciso destacar que a deflagração do movimento decorreu do anúncio de privatização do setor elétrico.
Ora, se há ameaça de privatização, há ameaça concreta de perda de postos de trabalho e, portanto, de perda do mais elementar direito social: o de estar empregado e conseguir, com isso, manter o próprio sustento. Então, sequer se trata de greve política, mas de greve para tentar manter o próprio emprego.
Há um perigoso hiato entre a evolução da regulação nacional e internacional acerca do direito ao verdadeiro exercício de uma liberdade sindical e a forma como o Poder Judiciário vem (des)tratando esse direito.
O TST não está isolado nesse cenário. Na Reclamação n. 54.597, interposta em 04/7/2016, com pedido cautelar, e extinta por perda de objeto em 18/5/2018, o Ministro Dias Toffoli afirmou: “tal e qual é lícito matar a outrem em vista do bem comum, não será ilícita a recusa do direito de greve a tais e quais servidores públicos em benefício do bem comum.(…) Atividades das quais dependam a manutenção da ordem pública e a segurança pública, a administração da Justiça e a saúde pública não estão inseridos no elenco dos servidores alcançados por esse direito”.
Nas Ações Diretas de Inconstitucionalidades n. 1306 e 1335, o STF, em decisão proferida em 2018, declarou a constitucionalidade do Decreto 4.264/95 do Estado da Bahia, que determina, em caso de paralisação de servidores públicos: sejam os grevistas “convocados’ a reassumirem imediatamente seus cargos, haja instauração de processo administrativo disciplinar caso persista o afastamento, desconto dos dias de greves e exoneração imediata dos ocupantes de cargo de provimento temporário e de função gratificada que participarem do movimento grevista”[8].
Na prática, portanto, o Decreto simplesmente impede que a greve ocorra sem prejuízo irreparável aos trabalhadores que aderirem ao movimento.
O que precisamos compreender é que a regulamentação do direito de greve, por lei publicada já em 1989, com o claro intuito de limitar seu exercício, demonstra que o reconhecimento da greve como direito fundamental não é suficiente para alterar a lógica do estranhamento, que faz desse fato social um constante perigo à paz do capital. Uma paz que é apenas aparente e que se sustenta, em larga medida, no acolhimento da possibilidade de resistência. Ou seja, também a regulação da greve serve ao sistema, porque ao admiti-la como atividade plural legítima, o Estado a controla.
Ora, não há direito de greve se os trabalhadores não puderem escolher o que por meio dela pretendem defender; se estiverem sob ameaça de multa diária ou de corte de ponto.
Negar a possibilidade de greve política, impor a permanência de 75% dos trabalhadores em atividade durante o movimento ou cortar o pagamento de salários, é o mesmo que negar o direito de greve, subtrair-lhe o conteúdo. Pior que punir o exercício da greve, é supostamente garanti-la, sem as condições mínimas para que tenha efetividade.
É verdade que greve atrapalha a vida de pessoas que aparentemente nada tem a ver com o problema social que ela mal disfarça. Não podemos esquecer, porém, que a greve é sobretudo um corajoso grito de socorro. É a denúncia de que determinada situação está se tornando insuportável. Antes de ser regulada como direito, é fato social, extrapola evidentemente os contornos que lhe podem ser impostos pelo Estado.
É, no mais das vezes, a única forma de se opor a determinado estado de coisas.
Toda vez que o Estado coíbe movimentos paredistas está, em realidade, buscando neutralizar a insatisfação social. O problema é que essa insatisfação irá se materializar em algum outro campo de forças, em algum outro cenário, e talvez não seja útil para ninguém que isso ocorra.
Esse hiato entre o avanço operado pela Constituição de 1988 e pelas normas internacionais do trabalho, e a postura que o Poder Judiciário vem adotando diante da greve precisa ser urgentemente debatido, especialmente em tempos de desmanche de direitos sociais como o que enfrentamos.
Afinal, de que serve uma Justiça do Trabalho que atua para impedir ou limitar o direito fundamental de organização coletiva da classe trabalhadora?
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
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