Opinião

Gerônimo e a grande safra – II

Por que a migração de tantas áreas de culturas da cadeia alimentar brasileira em favor da soja? Simples, mas sedutor

Disfunção. Metade do crédito público para o setor é despejada no cultivo da soja. Até mesmo agrotóxicos banidos na Europa surfam nas renúncias fiscais – Imagem: iStockphoto
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Na coluna anterior, para este site de CartaCapital, comecei a contar parte da vida de Gerônimo dos Santos Silva, nascido há 28 anos, em Cabrobó, Pernambuco. O pai viúvo deixou para os três filhos um pedaço de 20 hectares de terra, que o ajudara a criá-los. Ali a família, trabalhando junto, criava: ovíparos – ovelhas e carneiros; caprinos – bodes, cabras e cabritos. Espaço de uns cinco hectares o painho reservava para o milho que ajudava alimentar o rebanho e a própria família.

O vigoroso leite, que saía das fêmeas mais prolíferas, reforçava o café da manhã, assim como cuscuz, bolos, para os dias de festas. Vez ou outra, saía um queijinho virado em sabor da Serra da Canastra nas mãos de habilidosa sobrinha que vivera lá praquelas bandas de Minas Gerais.

Como está acontecendo em várias regiões provedoras de alimentos diversificados para a ração alimentar brasileira, grandes indústrias, sobretudo multinacionais, estão treinando técnicos agrícolas, agrônomos, representantes comerciais, revendas agropecuárias, a intensificarem suas aplicações químicas e/ou tóxicas e mudarem suas lavouras para soja, o mais frequente, e outros grãos (menos).

Acontece que a cultura de soja é lucrativa depois de alguns anos, feitos e retornados os pesados investimentos iniciais, e precisam, além de intensa aplicação de insumos importados, de amplas áreas de terras agricultáveis, para permitirem um bom retorno.

Lembrar-se assim que seus insumos de uso obrigatório são importados e, quando não, aqui dolarizados e balizados pelos preços no exterior.

Por que, então, a migração de tantas áreas de culturas da cadeia alimentar brasileira em favor da soja? Simples, mas sedutor:

  1. a) efeito manada, a partir das décadas de 1970 e 1980, pelo avanço nas fronteiras agrícolas motivado pelos baixos preços de grandes extensões de terras no Centro-Oeste;
  2. b) mais recentemente, na década de 1990 e no início dos anos 2000, o fenômeno se repetiu em terras menos inóspitas do Norte-Nordeste (Maranhão, Piauí, Tocantins, Oeste da Bahia – MAPITOBA);
  3. c) coincidentemente, pelos mesmos motivos da fase anterior, que incluíam a pressão das baixas produção, produtividade, mercado e preços, no Sul das culturas de arroz, trigo, feijão (Paraná);
  4. d) a predominância da lucratividade em soja durou, pelo menos, nos últimos 20 anos (se bem me lembro, seu último ano de crise foi em 2005), o que supõe continuidade de ganho a quem já estruturado para a cultura, ou capitalizados para enfrentar os investimentos iniciais em terras mais baratas – ou, pior, em pastos degradados – continuarem a ganhar dinheiro;
  5. e) os sojicultores já consolidados ou próximos de virem a ser apenas precisarão aumentar seus lucros, diminuindo seus custos de insumos agroquímicos, todos baseados em preços cartelizados pelo mercado internacional ou pelo humor da variação cambial no Basil, aumentando a produtividade com insumos orgânicos e naturais, abundantes no País, mas burramente por eles desconsiderados.

Quem leu a primeira parte sabe que ele, o filho mais velho, mesmo contrariado, entrou na esparrela capitalista empacotada para caboclos, caipiras, campesinos, camponeses, sertanejos e tabaréus. Alguns senhores ruralistas bobocas, também.

As irmãs, mais novas, bancadas pelo trabalho do pai e do filho mais velho, Gerônimo, que tocavam dia e noite as criações, podiam estudar em cidades com mais recursos, até se formarem. Gerônimo, sozinho, aguentou, mesmo nos momentos mais difíceis do mercado leiteiro ou no massacre multinacional para que cedessem aqueles 20 hectares em troca de metas cumpridas e comissões ganhas.

Pensando no estudo das meninas, Gerônimo ‘guentou’. Nunca confessou, por falta de ideia, coragem, timidez, que tinha naquelas mãos, além dos dedos compridos, o talento para pintar temas nordestinos, mesmo aqueles mais distantes de seu viver.

Chegaram, como sempre chegam para quem vive de agricultura familiar, os tempos de mercado em baixa. Tostões as multinacionais pagavam pelos mais ricos e naturais leites daqueles ovíparos e caprinos. Seus bens.

Financiamentos tomados em bancos não seriam saldados, mensalidades das escolas ficariam atrasadas, novos empréstimos ele não conseguiria, pois as garantias pedidas excediam seus bens. Perderia a terra.

As irmãs, achando-se estudadas, o pressionavam para vender tudo, casa e rebanho, e plantar soja. Ele relutava. Não entendia porra nenhuma daquela lavoura, sabia do investimento inicial para a transformação, como a comercialização de áreas pequenas em locais não adaptados a regiões não edafoclimáticas vocacionadas.

Então, como fica o dilema de nosso herói Gerônimo dos Santos Silva, nascido há 28 anos, em Cabrobó, Pernambuco, com sua área de 20 hectares, seus geracionais rebanhos de ovinos e caprinos, diante da pressão dos irmãos instrumentados pelos interesses multinacionais em “virar o mundo virado” (amém, Gilberto Gil) e plantar soja?

Se paciência tiverem, na próxima semana, leiam neste site de CartaCapital a parte final desta trilogia.

Inté!

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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