Frente Ampla

Que paz é esta?

Injusto e tardio, o cessar-fogo anunciado por Trump parece longe de resolver os problemas dos palestinos em Gaza

Que paz é esta?
Que paz é esta?
O presidente dos EUA, Donald Trump (C), posa para uma foto com líderes mundiais durante uma cúpula sobre Gaza em Sharm el-Sheikh em 13 de outubro de 2025. Foto: Evan Vucci / POOL / AFP
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O mundo inteiro viu a cena. No dia 13 de outubro, com Donald Trump ao centro, um grupo de líderes ocidentais e do Oriente Médio posaram para uma foto em Sharm el-Sheik, no Egito, para celebrar a primeira fase do acordo que encerraria o “conflito entre Israel e Hamas”, na verdade um grande massacre na Faixa de Gaza. À frente deles, lia-se numa instalação com letras enormes e brancas: “PAZ 2025”.

Mas que paz é esta que permite que bombas continuem a cair sobre as cabeças dos palestinos, matando crianças? Injusto e tardio, o cessar-fogo anunciado na semana passada parece longe de resolver seus problemas. Não devolve a eles suas terras, tomadas progressivamente desde 1948, e ignora totalmente que, desde outubro de 2023, Israel vem praticando um genocídio contra a população daquele território.

Como ignorar que mais de 67 mil palestinos morreram, e ao menos 170 mil foram feridos, desde que o massacre começou? Como esquecer as imagens de corpos mutilados por bombas, infâncias interrompidas, mulheres e homens adoecidos pela fome imposta por Israel, fuzilados ao tentar conseguir alguma comida para seus filhos?

Pergunte a Donald Trump, “aspirante a Prêmio Nobel da Paz”. Ou ao chanceler alemão, Friedrich Merz. Ou ao presidente francês, Emmanuel Macron, ao atual primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, ou ao ex-primeiro-ministro Tony Blair. Ao lado de autoridades do Catar, Egito, Jordânia, Emirados Árabes Unidos e Turquia, e do presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, todos sorriam enquanto posavam para a imprensa mundial na segunda-feira passada. Falaram em “reconstruir” Gaza. Lembraram que isto custará dezenas de bilhões de dólares.

Mas ninguém tocou na palavra “genocídio”. Mesmo que, em setembro, uma comissão de investigação da Organização das Nações Unidas (ONU) tenha afirmado que, sim, é isto que Israel vem cometendo há dois anos contra os palestinos. E não há indicação de que irá parar. A trégua não durou nem uma semana. As bombas voltaram a cair em toda a Faixa de Gaza. Ainda assim, a cerimônia no Egito foi vendida ao mundo como um momento histórico de redenção.

Há, porém, uma contradição insuperável no acordo de Sharm el-Sheik: o futuro da Palestina está sendo decidido entre potências sem a presença efetiva das vítimas diretas do massacre israelense. Como pode haver paz sem a voz do povo ocupado?

Ao ver as imagens da cúpula que selou o destino de Gaza, é inevitável não lembrar da sombria Conferência de Berlim, que entre o fim de 1884 e o início de 1885 conduziu a “partilha da África” entre impérios europeus – obviamente, sem a participação de nenhum país africano. Pois o acordo em Sharm el-Sheikh tem o mesmo “gostinho” de colonização. Enquanto a partilha africana foi feita em nome da “civilização”, em Gaza decidiu-se o futuro de um povo em nome da “paz” – mas sem a participação deste povo.

Conhecemos as histórias dos 20 reféns libertados pelo Hamas na última semana. Foram fartamente noticiadas em todo o mundo. Mas em Gaza – e na Cisjordânia, igualmente ocupada por sionistas fanatizados por décadas de desumanização de seus vizinhos – as pessoas foram reduzidas a estatísticas humanitárias. O silêncio cúmplice de grande parte da comunidade internacional reforça o caráter colonial dessa violência – um poder que decide quem tem direito a viver livremente e quem será permanentemente punido se tentar resistir.

O conceito de “paz”, estamos vendo, é mesmo relativo. Só isso explica o Prêmio Nobel da Paz 2025 concedido à venezuelana María Corina Machado, alinhada a interesses dos EUA e defensora de uma invasão armada em seu próprio país para derrubar Nicolás Maduro do poder. Há poucos dias, a senhora Machado expressou a Netanyahu “seu profundo agradecimento por suas decisões e ações firmes durante a guerra, assim como pelos êxitos de Israel” no massacre aos palestinos – as aspas são do gabinete do genocida israelense, em uma publicação na rede social X. Que paz é esta?

A premiação de María Corina Machado foi recebida com elogios nos mesmos círculos que patrocinam a desigualdade global. Sua escolha é uma ferramenta política que apenas legitima a visão hegemônica ocidental e a recente presença de forças armadas americanas na costa da Venezuela e Cuba. Os mesmos que bombardeiam e excluem premiam os “campeões” da paz. Mas não há paz verdadeira quando a soberania de povos inteiros é negada, como tem sido feito há 80 anos com os palestinos. Tal como a partilha da África, o acordo de Sharm el-Sheik expõe uma velha estrutura de dominação disfarçada de modernidade diplomática. Em ambos os casos, a lógica é a mesma: quem tem poder decide o futuro de quem sofre as consequências deste poder.

Mas há outra paz possível. E ela demanda uma nova lógica global. Como insiste o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, uma das vozes mais potentes do mundo hoje, uma paz verdadeira só será possível num mundo multipolar, em que a autodeterminação dos povos seja respeitada e no qual o diálogo entre iguais substitua a imposição dos mais fortes. Um mundo em que a reconstrução venha acompanhada de soberania, e não de tutela neocolonialista. É por isso que cresce a importância do Sul Global, do BRICS e outras novas alianças construídas fora da órbita do poder imperial, em busca de um novo equilíbrio entre as nações, não apenas nas trocas econômicas, mas também com justiça e respeito aos direitos humanos.

O mundo multipolar não é apenas uma estratégia geopolítica: é esperança de romper com a lógica da partilha e da tutela. Enquanto as nações ricas insistirem em falar de paz sem ouvir as vitimas de sua ação belicista, nada mudará. É hora de exigir mais do sistema internacional: em vez de cessar-fogos frágeis, queremos o fim do colonialismo disfarçado de mediação diplomática. Em vez de premiações vazias, exigimos reparação histórica. No lugar do silêncio e da conivência diante de um genocídio, solidariedade e empatia.

Mesmo frágil, o acordo feito no Egito não pode retroceder, pois garante o mínimo: a sobrevivência do povo palestino sem bombas e com ajuda humanitária real. A pressão internacional, que tem feito marchas populares imensas em dezenas de países, não pode esmorecer e deve vigiar para que o cessar-fogo não seja descumprido. O “Estado Palestino” é reconhecido pela maioria das nações: é preciso agora assegurar que ele exista de fato. Não podemos aceitar que o comando daquela nação seja escolhido pelos poderes que a massacraram. O povo palestino deve escolher seus governantes, seu presente e seu futuro.

Basta de genocídio!
Palestina Livre e reconstruída já!

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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