Frente Ampla

Como se morre no Rio?

Falta inteligência para direcionar operações e falta promover uma política de asfixia do financiamento e de controle rigoroso da entrada de armas e drogas

Em retaliação à morte de um comparsa, milicianos queimaram ônibus e transformaram a cidade em praça de guerra – Imagem: Bruno Kaiuca/AFP
Apoie Siga-nos no

Não é a primeira vez que escrevo sobre a questão da política de (in)segurança pública do Rio de Janeiro. Minha opinião é conhecida e formada com base em estudos de especialistas, mas também na dura realidade dos que tentam viver sem que seus direitos sejam constantemente afrontados e suas vidas colocadas em risco.

Neste debate, sempre me vem à mente o maravilhoso prólogo do escritor argelino Albert Camus, eu sua obra A Peste. Ele afirma que para conhecer bem uma cidade é preciso saber como lá “se trabalha, como se ama e como se morre”. No Rio de Janeiro, se morre violentamente ao beber com amigos num quiosque; ao sair de uma reunião política após um dia repleto de agendas; ao voltar da escola; ao andar de moto com um guarda-chuva; ao morar em comunidade alvo de operações policiais constantes. Se morre por balas ” perdidas”, na verdade achadas, pois os corpos que caem têm sempre as mesmas características étnicas, em geral jovens e, mais recentemente, muitas crianças.

Teses e pseudossoluções não faltam e o fato é que a situação não só persiste como se agrava, vitimando mais inocentes a cada ano. Fazendo com que o medo prevaleça, deixando pessoas aterrorizadas, sempre à espera da próxima chacina. E esta é a única certeza que elas têm, que ela virá. Um projeto do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) analisou operações policiais na região metropolitana do Rio de Janeiro entre 2018 e 2022. Os dados são alarmantes.

O estudo já abre afirmando que: “A partir da gestão dos militares, o projeto de segurança pública para o Rio de Janeiro aprofundou suas bases no militarismo, com a sempre presente falta de transparência e o excessivo gasto para manter a máquina de moer gente girando. Nesses cinco anos, registramos mais de cem chacinas em operações policiais, momentos em que a violência policial se agudiza e apresenta sua mais cruel face.” Ao constatar que a política de (in)segurança pública patrocinada pelo governo estadual concentra-se no discurso de “guerra às drogas”, as com ações de policiamento demonstram altíssima letalidade. E os que são presos em flagrante e aumentam a população carcerária são os moleques do varejo.

Em nenhum plano estão operações para coibir o tráfico de armas e munições. Em resumo, uma política errática que concentra seus esforços no combate às drogas e desconsidera dois fatores fundamentais para garantir efetividade à política: coibir os meios de violência e articular o fechamento das torneiras de um financiamento a serviço da morte e do enriquecimento dos que controlam a indústria do crime.

A formação das policias militares ainda seguem a ideologia de segurança nacional, como se observa no art. 144 da CF.  As FFAA são preparadas para guerra, onde os inimigos, neste caso, podem ser os que vivem nas comunidades. Por isso não devem ser usadas em operações nos territórios. No Brasil não há pena de morte. É preciso asfixiar, desmontar, prender e julgar.

Há duas estruturas que protegem parte do crime organizado. A econômico-financeira e a política. Há tentáculos e alianças criminosas nos poderes do estado do Rio de Janeiro. Como pensar que este estado vai coibir esta onda crescente de opressão e violência? Até bem pouco tempo, havia aliança no planalto central.

Morrem policiais e civis desarmados, inocentes, trabalhadoras e trabalhadores, estudantes.

Estamos perdendo vidas para todos os lados, mutilando pessoas, gerando traumas psicológicos, orfandades em famílias. E pergunto: esta política de segurança deu certo? Obviamente que não.

Mapas, dados, informações sobre quem domina o que e com que objetivo não faltam. Falta inteligência para direcionar as operações e, principalmente, falta promover uma política de asfixia do financiamento e de controle rigoroso da entrada de armas e drogas no estado. O governador agora fala grosso. Afirma que tudo será diferente e joga para o Congresso a responsabilidade de aprovar projetos com que conteúdo? Fim da progressão de pena para criminosos detidos com armas de fogo; para envolvidos em lavagem de dinheiro para organizações criminosas; e para milicianos que atuem em serviços sob concessão, como água e luz.

Bem faria ao governador se perguntar quantos desses criminosos efetivamente vão parar na cadeia. Se cumprir este primeiro passo, que é combater a impunidade, já estaria contribuindo muito para avançar na política de segurança. O governo Lula busca entrar para integrar ações de inteligência e reforço policial, respeitando o princípio federativo, mas é preciso estabelecer condições. Uma delas, ter um interlocutor civil confiável para falar pela segurança pública no estado. Seguir decisões judiciais e constitucionais para as operações de agentes públicos.

Não há soluções mágicas. Não há salvadores da pátria. Não há como permanecer como estamos. O Rio quer que sua população seja respeitada, que seja reconhecida pelo modo como ama, trabalha e festeja sua riqueza cultural e não pela forma brutal como está morrendo.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo