Frente Ampla

A censura direcionada aos que lutam contra injustiças

‘Minha punição pela Alesp foi uma forma de reforçar as estruturas de poder existentes e manter o status quo’, escreve Mônica Seixas

Foto: Alesp
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Na mesma semana em que vimos o presidente Lula ser atacado por defender o fim do genocídio do povo palestino, um homem negro foi preso após ser esfaqueado por um homem branco, e uma Escola de Samba foi constrangida por criticar uma polícia passível de críticas, fui julgada e penalizada na Alesp por ter defendido que, além de figuras alegóricas, São Paulo continua a ser palco de racismo institucional.

O Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da ALESP votou na terça, 20 de fevereiro, pela absurda acusação por falta de decoro parlamentar contra mim, após eu ter questionado o racismo institucional na falta de recursos destinados à Secretaria de Políticas para Mulheres, numa reunião da Comissão Permanente de Defesa dos Direitos da Mulher, à própria secretária em exercício, durante sua prestação de contas ao legislativo. Vocês conhecem essa história. Ela estampou os jornais no último ano. Embora celebrada como grande inovação, a secretaria de políticas para mulheres não contava com recursos suficientes, e a secretaria não existiu efetivamente num momento em que vemos casos de violência contra mulheres batendo recordes no Estado, e a situação de acesso à saúde básica, como ginecologia, obstetrícia e até pré-natal, é precária em muitos pontos do Estado.

Quando falamos de mulheres negras, a fome, a violência urbana e a morte de seus filhos e companheiros em operações policiais, que não resolvem o problema da violência mas trazem ainda mais dor e violência aos territórios periféricos, aumentam. E é justamente contra esse estado de coisas que as mulheres negras estão lutando. E, por me juntar a elas, disse e repito o absurdo que é ter uma secretaria apenas ocupada de forma figurativa, sem possibilidade de atuação efetiva por falta de verbas.

O processo de quebra de decoro contra mim não é só uma violação à minha atividade parlamentar, mas também se insere no contexto da grande ameaça aos princípios democráticos em nome de um método de punição e tortura. Ainda que o golpe planejado pela extrema direita brasileira não tenha se concretizado, a verdade é que quando se persegue entidades culturais, políticos em sua liberdade parlamentar, e processos arbitrários e até mesmo exceções de pessoas no campo da segurança pública são comuns, significa que um Estado democrático já não é tão democrático assim.

Hoje esse processo de chantagem contra nós terminou e, embora a pena tenha sido amenizada graças à pressão popular, já que a intenção inicial era me afastar das minhas atividades parlamentares por ao menos 90 dias, é absurdo pensar que, ao denunciar que, apesar da propaganda de inclusão, o governo Tarcísio continua a praticar inúmeras violências ou desassistências a mulheres, sobretudo mulheres negras.

Pessoas que lutam contra o racismo muitas vezes enfrentam criminalização e retaliação, especialmente em sociedades onde as estruturas de poder estão enraizadas em sistemas racistas. Minha punição foi justamente uma forma de reforçar as estruturas de poder existentes e manter o status quo, já que fui punida por denunciar o racismo institucional que atravessa governos e se perpetua na gestão atual.

A falta de recursos para a Secretaria de Políticas para Mulheres, que é uma pasta criada para cuidar da saúde, garantir a segurança, capacitar e investir no potencial econômico e criativo das mulheres, é a clara negação de direitos às mulheres negras, já que são essas mulheres, em todos os indicadores sociais, que enfrentam os maiores desafios e desigualdades estruturais, sendo, portanto, as principais destinatárias de políticas públicas. A escolha de uma mulher negra para ocupar tal pasta não impede que desigualdades baseadas em raça sejam perpetuadas.

A ilusão de diversidade que o governo do Estado promove com a inclusão superficial de membros de grupos minoritários se desfaz quando se percebe que o simples fato de uma mulher negra ocupar um espaço de poder não traz automaticamente impacto significativo na vida das mulheres que esta deveria representar, pois o racismo institucional segue enraizado nas práticas governamentais. Minha fala reflete não somente minha luta, mas a de todas as mulheres, para que a sociedade reconheça como o racismo se manifesta, e meu desejo é continuar trabalhando para reformar e transformar as instituições para que sejam mais equitativas e inclusivas para todas as pessoas.

Contudo, a falta de letramento racial suficiente para interpretar questões raciais de maneira crítica e compreender como o racismo opera nas estruturas da sociedade continuará permitindo a criminalização de esforços antirracistas e retaliações como esta que sofri hoje. Esse ataque, porém, só fortalece minha determinação e necessidade de seguir lutando contra o racismo e outras formas de opressão contra as mulheres. E a ampla mobilização das mais de 10 mil pessoas que pressionaram e repudiaram a tentativa de nos tirar o mandato nos manterá firmes na luta.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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