Opinião

Francisco, o último estadista global?

O primeiro papa jesuíta não rompeu dogmas, mas devolveu à Igreja Católica o fôlego moral para falar dos grandes problemas da humanidade

Francisco, o último estadista global?
Francisco, o último estadista global?
Papa Francisco cumprimenta duas jovens refugiadas no Centro de Recepção e Identificação (RIC) em Mitilene, na ilha de Lesbos. Foto: Louisa GOULIAMAKI / POOL / AFP
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Morreu na manhã de segunda‑feira 21, Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco, aos 88 anos. Partiu como viveu: longe dos salões do Palácio Apostólico, na discreta Casa Santa Marta, sem pompa nem circunstância. Na última aparição na varanda da Basílica de São Pedro — voz já falhando — limitou‑se a desejar uma ‘Feliz Páscoa’ a milhares de fiéis. A causa imediata da morte, segundo o cardeal Kevin Farrell, foi a pneumonia bilateral que o acompanhava desde a internação em fevereiro.

Primeiro pontífice jesuíta e latino‑americano, Francisco levou a teologia das periferias ao centro do debate mundial. Mediou o (agora inviável) degelo entre Estados Unidos e Cuba, encorajou o acordo de paz na Colômbia e insistiu em manter — ainda que entreaberta — a porta do diálogo inter‑religioso no Oriente Médio e os clamores por um cessar-fogo em Gaza. Quando a governança global emperrou, trouxe à mesa a essência cristã e republicana da fraternidade.

Para Mino Carta — cujo faro sobre o poder sempre detectou impostores — Bergoglio foi “o verdadeiro líder da humanidade apavorada”, “voz da resistência aos falsos profetas do neoliberalismo” e, sobretudo, “estadista do mundo”. Título raro na era dos algoritmos e dos autocratas, outorgado não por chanceleres, mas por gestos mínimos: o telefonema ao refugiado, o sapato gasto nos corredores do hospital, a recusa obstinada aos luxos da corte.

Papa Francisco na Praça de São Pedro, no Vaticano, em 20 de abril de 2025. Foto: Tiziana Fabi/AFP

Em diversos editorais desta CartaCapital, Francisco aparece como um herdeiro espiritual de Francisco de Assis e antagonista direto de João Paulo II – “um papa de encenações”, segundo Mino. Contra o legado clericalista de Wojtyla, Bergoglio sacou dois flagelos: a faxina no IOR (o banco vaticano) e a política de tolerância zero aos abusos sexuais. Não venceu todas, mas mudou o tom nos corredores. Sua opção pelos pobres trocou o latim das encíclicas por uma prosa que falava de salário universal, perdão de dívidas e da culpa sistêmica de um mercado que mata.

Com a encíclica Laudato Si’, deu à crise climática o timbre moral que os chefes de Estado evitavam: devastar a Amazônia tornou‑se “pecado contra a Casa Comum”. Uniu clima, migração e pobreza como sintomas de uma mesma hemorragia moral e ética.

Bergoglio não rompeu dogmas, mas escancarou as janelas da doutrina para o mundo — do acolhimento a casais homoafetivos à crítica direta à lógica de muros de Donald Trump. No Brasil, também tornou‑se antagonista natural ao bolsonarismo ao denunciar, repetidamente, a incompatibilidade entre o ódio e os valores cristãos.

O Papa Francisco já não surgirá na janela onde, na noite de 13 de março de 2013, saudou o mundo com um desarmante buona sera. Fica para o próximo conclave responder à pergunta que Mino espalhou por estas páginas: surgirá outro estadista global capaz de proclamar  que a civilização começa e termina no cuidado com os mais pobres?

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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