Sociedade

Sínodo da Amazônia dobra aposta na renovação e propõe ‘pecado ecológico’

A agenda papal concentra-se agora na economia. Em março ocorre um encontro com jovens para novas ideias para o desenvolvimento

Papa Francisco celebra o encerramento do Sínodo da Amazônia. Foto: Andreas Solaro/AFP
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Como previam Jair Bolsonaro e o general Augusto Heleno ao ordenar a arapongagem a bispos, a destruição da floresta e o descaso com os povos indígenas marcaram o Sínodo para Amazônia. Depois de três semanas de intensos debates, encerrados em 27 de outubro, o encontro reafirmou a importância dos direitos indígenas e da demarcação de terras.

Em tempos de descortesia, vale lembrar que não é do feitio dos líderes católicos bater de frente com nenhum governo. E o Vaticano, antes de tudo, é um órgão diplomático. Dentro desses limites, críticas e denúncias foram contundentes. O relatório final fala nos males provocados por “interesses econômicos e políticos dos setores dominantes”, cujos cúmplices são “alguns governantes” e “algumas autoridades indígenas”. Sustenta também que demarcar e proteger as terras indígenas é obrigação dos Estados Nacionais e de seus respectivos governos.

Ainda sobre o poder público, defende ser papel da Igreja exigir educação bilíngue e de qualidade a essa população. Também se propôs a criação do “pecado ecológico”, descrito como “atos e hábitos de poluição e destruição da harmonia do ambiente”.

Do ponto de vista eclesiástico, avançaram as propostas que devem dar à Igreja Católica nos próximos anos um rosto menos branco e europeu. Abriu-se caminho para que se incorpore ao rito amazônico algo da cosmovisão indígena. Mais de 70% dos bispos aprovaram a ordenação dos viri probati naquela região. Homens casados exercendo papel de padre não são exatamente novidade na Igreja Romana. Há padres casados atuando nas igrejas do Oriente Médio subordinadas ao Vaticano. Em 2009, o papa Bento XVI recebeu de volta padres anglicanos sem exigir que eles renunciassem ao matrimônio, autorizado pela religião inglesa.

A ordenação de homens casados teve mais de 70% de aprovação

Outro avanço foi a discussão sobre um ministério feminino. Oito em cada dez votantes recomendaram mais debates sobre a ordenação de diaconisas mulheres. Diáconos, como no sacerdócio, devem ser homens. Não podem celebrar a missa, mas são autorizados a pregar, batizar e liderar casamentos, vigílias e funerais. Caso autorizados por um bispo, podem ainda administrar uma paróquia. As mulheres, vale lembrar, lideram mais de dois terços das comunidades religiosas na Amazônia. Essa recusa ao apostolado feminino está baseada em uma interpretação formalista do Evangelho cristão.

Em linhas gerais, se Jesus não escolheu apóstolos mulheres, não seriam seus seguidores a fazê-lo. O Novo Testamento traz, porém, menções a mulheres liderando cerimônias religiosas. O papa prometeu reunir uma comissão para estudar a história das diaconisas nos primeiros séculos.

Conciliação. No encerramento do encontro, o papa pediu desculpas por ataque de fanáticos ultraconservadores. Ouvidos, os indígenas veem com bons olhos os resultados do evento em Roma. Foto: Andreas Solaro/AFP

As conclusões sinodais não têm valor de lei. São apenas recomendações, que podem ou não ser acatadas pelo papa. No caso de Francisco, a expectativa é que ele acolha a maioria das indicações. E promete fazê-lo em tempo recorde, antes do fim do ano. O padre espanhol Luis Miguel Modino, que atende mais de 20 comunidades no Rio Negro, avalia que os clérigos e indígenas saíram satisfeitos. “Se fossem muito radicais, as diretrizes poderiam valer com este papa, mas ser derrubadas pelo próximo. É preciso entender o Sínodo como um processo”, defende. Modino, que acompanhou in loco o evento pela Rede Eclesial Pan-Amazônica, destaca a importância do evento para os trabalhos naquela região. “Se queremos gerar um consenso, não podemos ser tão ousados quanto gostaríamos. Continuaremos navegando.”

O tom moderado não poupou o encontro de críticas e ataques das franjas tradicionalistas. Na terça-feira 22, dois fanáticos ultraconservadores invadiram a Igreja de Santa Maria, em Traspontina, a poucos passos do Vaticano, para roubar estátuas trazidas dias antes ao altar pelos participantes indígenas do Sínodo. Depois, as lançaram no Rio Tibre. A figura de uma mulher indígena, nua e grávida, que representava a conexão com a Mãe Terra, foi falsamente “denunciada” pelos criminosos como uma deusa pagã – embora nenhum povo indígena amazônico adore estátuas com essas características.

Toda a ação foi filmada pelos próprios invasores e compartilhada na internet. Como que por providência divina, as imagens foram encontradas intactas pelos carabinieri. A Fraternidade Sacerdotal São Pio X, que se separou de Roma por discordar das transformações promovidas nos anos 1960, convocou seus filiados a orarem em jejum contra o Sínodo, chamado de teatro de cenas execráveis com “abominação de ritos idólatras”.

Mulheres no poder? Sacerdotes votaram a favor de um ministério feminino. As freiras, entretanto, ainda não foram autorizadas a participar dessas mesmas consultas.
Foto: CNS/Vatican Media/Reuters

Entre os muros do Vaticano, marcou-se posição contra o sectarismo embolorado que esses grupos defendem. Na abertura do encontro, Francisco disse não ver diferenças entre os cocares usados por alguns desses povos e os chapéus pontiagudos da liturgia católica. Também criticou a colonização ideológica imposta aos povos da região. Disse o papa: “Os povos amazônicos possuem entidade própria, sabedoria própria, consciência de si. Eles têm uma maneira de ver a realidade e tendem a ser protagonistas da própria história”.

Em uma jogada inédita, o papa divulgou quase imediatamente o documento final do Sínodo e o número de votantes que cada proposta recebeu. Na visão de brasileiros presentes, um “cala-boca” aos que tentaram ofuscar o encontro. Entre esses interlocutores, a avaliação é de que o impacto do Sínodo ultrapassou os limites eclesiais e levou ao mundo a necessidade de um olhar mais fraterno à Amazônia. Ouviu bispos, clérigos e comunidades tradicionais em busca de novos caminhos para a Igreja na Amazônia. Além disso, a cobertura atraiu a atenção da mídia. As coletivas diárias reuniram entre dezenas, às vezes centenas, de jornalistas de várias partes do mundo. À imprensa católica tradicionalista coube repercutir falsas polêmicas levantadas pelos ataques ao evento.

Francisco volta agora sua atenção para a economia e a desigualdade

No dia seguinte à publicação das recomendações do Sínodo, o papa recebeu governadores da Região Amazônica brasileira. Participaram o governador do Amapá, Waldez Góes, o do Amazonas, Wilson Lima, e o do Pará, Helder Barbalho. Também compareceram, representando a Região Nordeste, o governador do Piauí, Wellington Dias, e o do Maranhão, Flávio Dino.

Longe da conspiração nacionalista ao estilo Bolsonaro, o grupo defendeu os mecanismos de cooperação internacional, como o recém-esvaziado Fundo Amazônia. Propuseram ainda que os países ricos assumam compromissos com esse novo modelo de desenvolvimento. “À medida que esses países praticam um consumismo desenfreado, que eles assumam encargos proporcionais ao danos ambientais que eles provocaram”, sugeriu Dino em vídeo divulgado nas redes sociais. Um representante do governo federal deu o ar da graça. O secretário do Itamaraty, Fábio Mendes Marzano, limitou-se a negar que haja qualquer crise ambiental no Brasil.

A jornada não parece ter sensibilizado Jair Bolsonaro. Em encontro com investidores na Arábia Saudita na quarta-feira 30, o ex-capitão admitiu que as queimadas foram “potencializadas” por ele. “Há poucas semanas, o Brasil foi duramente atacado por um chefe de Estado europeu sobre as questões da Amazônia. Problemas que acontecem anos após anos, que é da cultura por parte do povo nativo queimar e depois derrubar parte de sua propriedade para o plantio para sobrevivência. Mas foi potencializado por mim exatamente porque não me identifiquei com políticas anteriores adotadas no tocante à Amazônia. A Amazônia é nossa. A Amazônia é do Brasil”, despejou.

Não bastasse, veio a público que, em junho, a Embratur pediu formalmente à Funai a suspensão da demarcação de uma terra indígena no Sul da Bahia, próxima à cidade de Ilhéus. O pedido beneficia uma rede portuguesa de hotéis, cujo plano é inaugurar em 2021 um resort com mais de 400 apartamentos.

Paranoia. Bolsonaro e o general Heleno encomendaram arapongagem contra bispos brasileiros que colaboravam com a preparação do Sínodo.

A ecologia é uma das grandes marcas do papado de Francisco. Em 2013, em meio à Jornada Mundial da Juventude no Rio de Janeiro, ele fez questão de destacar a preservação da Amazônia. Declarou à época que a região era “teste decisivo” para a Igreja e para a sociedade brasileira. Dois anos mais tarde, em 2015, seria lançada a encíclica Laudato Si’, que introduziu o conceito de casa comum e reforçou a simbiose entre o grito dos excluídos e o grito da natureza.

Os cardeais escolhidos até agora – vindos de lugares tão improváveis quanto a Etiópia ou a Polinésia – refletem essa concepção. Foram dois anos de preparativos para o Sínodo amazônico. A agenda papal concentra-se agora na economia. Está marcado para março de 2020, na pequena sé episcopal de Assis, um encontro do papa com jovens comprometidos com novas ideias para o desenvolvimento. Batizada de “A Economia de Francisco”, a convocação quer semear um pacto com esses economistas para tornar o futuro mais justo, sustentável e generoso com os excluídos. A Bolsonaro, Heleno e Paulo Guedes recomenda-se iniciar as orações.

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