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Formas de matar

O suicídio de Karol Eller, uma influenciadora digital de 36 anos que buscava a “cura gay”, reforça a urgência da criminalização
desse tipo de tortura

Formas de matar
Formas de matar
A influenciadora bolsonarista Karol Eller, 36. Foto: Reprodução
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Karol Eller era uma influenciadora digital bolsonarista de 36 anos. Na quinta-feira 12, ela compartilhou, em suas redes sociais, um story no qual alegava ter “perdido uma batalha” e fornecia um endereço para o resgate de seu corpo.

O ato que colocou fim à vida dela ocorreu às vésperas de uma nova “internação” em um “retiro evangélico” para a “cura gay”.

Urge compreender a dimensão de práticas como esta, que visam tornar patológicas as nossas existências.

A noção de “cura” só pode ser concebida em relação à noção de sua posição antagônica, ou seja, a da “doença”.

No que diz respeito à compreensão da dimensão política e social dos discursos produtores de categorias como “patológico” e “saudável”, uma das tradições críticas mais aceitas e difundidas é aquela que tem como eixo fundamental o pensamento do filósofo e teórico social francês Michel Foucault (1926-1984).

Por meio de trabalhos reconhecidos e premiados, como História da Loucura (1961) e O Nascimento da Clínica (1963), Foucault tornou-se um dos maiores nomes da filosofia ocidental do século XX.

Segundo o também filósofo francês Didier Eribon, um dos mais importantes biógrafos e comentaristas de ­Foucault, sua mensagem pode ser lida como uma “revolta contra os poderes da normalização”.

Os discursos da “cura gay” são exemplos explícitos daquilo que Foucault expunha e criticava.

Desde a Modernidade, alguns grupos exerceram o poder de nomear “a doença” e “o doente”, sem nunca, no entanto, depreenderem suas posições dentro de uma estrutura social desigual de poder.

Um dos casos, talvez, mais emblemáticos da arbitrariedade de diagnósticos médicos seja o da drapetomiania.

Inventado em 1851, na Louisiana, por Samuel A. Cartwright, o “diagnóstico” categorizava como “doentes” as pessoas escravizadas que tentavam fugir dessa condição.

O racismo “científico” de Cartwright encontra ecos lgbtifóbicos no presente. A Organização Mundial da Saúde desempenhou papel decisivo na classificação de nossos corpos como “doentes”.

A homossexualidade feminina ou masculina, por exemplo, figurou como doença na sua lista de Classificação Internacional de Doenças até 1990. Já a transexualidade foi considerada uma “doença mental” até o recentíssimo ano de 2019.

É possível localizar, dentre as práticas médicas, psicológicas e religiosas, aquelas que se têm dedicado, ao menos ao longo do último século, a “curar”, “tratar” ou “converter” pessoas LGBTI+.

No Brasil, embora tais práticas sejam consideradas ilegais pelo Conselho Federal de Psicologia desde 1999, dados de uma pesquisa realizada pela PUCRS revelam, que, em 2018, um em cada três profissionais da área apresentava “atitudes corretivas” com relação à sexualidade de pacientes que requeriam ajuda. Mais de 10% dos profissionais que responderam a pesquisa apresentavam as mesmas atitudes, mesmo quando não lhes era requerida ajuda sobre o tema.

Em realidade, as práticas que partem da ideia de que sexualidades “não hétero” são patológicas produzem cenários de trauma e tortura e, com documentada frequência, levam pessoas ao suicídio.

Há uma abundante produção científica, documental e ficcional sobre o tema, além de sanções políticas em diversos países para que tais práticas sejam abolidas. No Brasil, ainda há registro de 26 formatos de “curas gay”.

Karol Eller foi vítima de uma delas ao praticar o que especialistas da área chamam de “autoextermínio”.

A partir de mais essa tragédia, deputados do PSOL protocolaram um pedido de investigação contra a igreja envolvida no caso, e a deputada Erika Hilton (PSOL-SP) apresentou um Projeto de Lei (PL) que visa criminalizar práticas desse tipo.

Enquadrar-nos como “doentes” é só mais uma das estratégias que os nossos inimigos usam para nos extinguir.

Seguimos lutando, para dizer o óbvio: a doença está no ódio deles. •

Publicado na edição n° 1283 de CartaCapital, em 01 de novembro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Formas de matar’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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