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Fênix nordestina

A eleição de Lula abre uma janela de oportunidades para o Nordeste, tão castigado ao longo do século XX pela interrupção de seus projetos de desenvolvimento

Nos anos 1960, Furtado focou em projetos de irrigação adequados à realidade local e na capacitação de profissionais para atividades industriais e agropecuárias - Imagem: Arquivo Nacional e SUDENE/Arquivo
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O Nordeste tem sido, historicamente, a região com maiores dificuldades econômicas e sociais. Em meados do século XX, enquanto o Sudeste recebia vultosos investimentos públicos e privados para industrialização e modernização de suas estruturas econômicas, capitaneados pelo governo federal, os nordestinos viviam na estagnação e sem perspectivas. No Sertão, cuja economia se restringia à agropecuária, muito limitada pelo clima semiárido, as secas frequentes tornavam a vida ainda mais precária e provocavam o êxodo de parte da população. Na Zona da Mata canavieira, base da economia do Brasil nos séculos XVII e XVIII, os trabalhadores e suas famílias eram expulsos dos engenhos e levados às periferias das cidades próximas. Tornaram-se “boias-frias”, que trabalhavam nos engenhos seis meses por ano, ficando desempregados nos outros seis. Esse quadro de dificuldades e desesperança produziu durante décadas uma enorme migração para o Sudeste, e os nordestinos se tornaram importante mão de obra barata para a construção civil e outros setores da economia.

A atenção do governo federal para o Nordeste começou a mudar durante o mandato de Juscelino Kubitschek. Em 1958, o presidente criou o Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste, que, capitaneado pelo economista paraibano Celso Furtado, produziu um minucioso relatório intitulado “Uma Política de Desenvolvimento Econômico para o Nordeste”. O documento apresentava um diagnóstico detalhado sobre as raízes da tragédia nordestina e mostrava a necessidade de mudar os complexos socioeconômicos. Estes tinham sido herdados e mantidos por velhas oligarquias, incapazes de liderar um movimento de industrialização, como ocorria no Sudeste, com o firme apoio do governo federal e com a participação de capitais privados nordestinos que para lá migravam.


SERGIO MACHADO REZENDE. Professor emérito da Universidade Federal de Pernambuco, é um dos Coordenadores do Comitê Científico do Consórcio Nordeste e foi ministro da Ciência e Tecnologia de 2005 a 2010, no governo do presidente Lula.

O relatório propunha ainda um plano de mudanças, a ser implementado por uma nova autarquia, a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste. Criada em 1959, a Sudene recebeu recursos federais consideráveis do governo Kubitschek para executar um plano de médio prazo, com projetos para estimular o crescimento econômico da região. Dentre eles, tinham destaque projetos de irrigação adequados à realidade local, capacitação de profissionais para atividades agropecuárias e industriais e formação de quadros técnicos.

Celso Furtado assumiu a superintendência da Sudene e implantou uma gestão inovadora para os padrões do serviço público na época, que valorizava o planejamento, o recrutamento de quadros técnicos de alto nível e a abordagem multidisciplinar dos problemas. As decisões sobre aprovação de projetos eram tomadas pelo Conselho Deliberativo, formado pelos governadores dos estados e representantes de entidades federais, com base nos pareceres das equipes técnicas. Os primeiros resultados logo apareceram, com muitos casos de inovação na agropecuária e a implantação de novas indústrias, gerando um ambiente de animação no meio empresarial e na população local. Com o golpe de 1964, Furtado foi incluído, porém, na primeira lista de cassados, perdendo seus direitos políticos por dez anos.

COM CELSO FURTADO NA CHEFIA DA SUDENE, JUSCELINO KUBITSCHEK INVESTIU PESADO NA REGIÃO, MAS O SONHO RUIU COM O GOLPE DE 1964

Durante o regime militar, a atuação da Sudene transformou-se gradualmente, com o sistema de incentivos fiscais passando a ser o instrumento de apoio mais importante, e com parte de seus recursos orçamentários destinados às outras regiões. Ela perdeu seus quadros técnicos mais expressivos, que não aceitavam o sistema autoritário de gestão e se transferiam para as universidades, revigoradas pela reforma universitária de 1968. A Sudene também passou a sofrer pressões políticas para a aprovação de projetos e logo surgem denúncias de favorecimento de grupos, comprometendo ainda mais a sua atuação. Nesse quadro de fragilização, a Sudene inaugura, em 1974, sua nova sede na Cidade Universitária, no Recife, num grande e opulento prédio, com o qual a ditadura pretendia camuflar as dificuldades da instituição.

Na década de 1980, a crise econômica enfrentada pelo Brasil, com o aumento da dívida externa e a hiperinflação, atinge de cheio o Nordeste, debilitando ainda mais a Sudene. Nos anos 1990, ela teve grande parte de seus servidores colocados em disponibilidade no governo Collor. Atingida por denúncias de corrupção, acabou extinta em 2001, no governo de Fernando Henrique Cardoso. As fortes reações no meio político e empresarial levaram o governo a criar a Agência de Desenvolvimento do Nordeste, a Adene. Já na gestão Lula, em 2007, a Sudene foi recriada, numa tentativa de recuperar a instituição pensada por Furtado, mas ela nunca voltou a ter instrumentos e quadros técnicos necessários para aflorar.

Mesmo sem conseguir retomar o papel da Sudene, os governos Lula e Dilma Rousseff promoveram numerosos programas federais voltados para o atendimento à saúde, educação, ciência e tecnologia, assistência social, habitação popular, expansão e melhora da infraestrutura, dentre outros. O resultado foi a recuperação dos indicadores econômicos e sociais do Nordeste, tais como a redução do desemprego, aumento do rendimento médio e do consumo das famílias, aumento das atividades industriais e de serviços, aumento da escolaridade e dos formandos em cursos superiores e diminuição da mortalidade infantil, entre outros.

Como observa a professora Tânia Bacelar, que fez parte da equipe técnica da Sudene, “a realidade regional se transformou, sendo o Nordeste atual muito distinto daquele que foi pensado por Furtado. Ao mesmo tempo que avançou na indústria e nos serviços, o Nordeste viu seus dois velhos complexos, o da Zona da Mata e o do Sertão, perderem força, e novas atividades agropecuárias se desenvolverem. A emigração em massa de nordestinos para outras regiões arrefeceu e a migração interna e ajudou a fortalecer uma rede de cidades médias que não existia antes. Até a seca prolongada dos anos recentes não gerou o drama social agônico, posto que a chegada da Previdência ao meio rural e as políticas sociais deram o lastro da resistência tão sonhada por Furtado, que queria obtê-la por outros caminhos”.

Mesmo sem recuperar o prestígio da Sudene, Lula investiu pesadamente na região. O Nordeste teve a menor média de mortes por 100 mil habitantes do Brasil – Imagem: GOVMA e Arquivo/Agência PT

Infelizmente, o cenário mudou muito nos últimos anos. Desde que assumiu o governo, Jair Bolsonaro, que tinha sido derrotado no Nordeste nas eleições de 2018, passou a hostilizar os governadores da região, quase todos filiados a partidos de oposição ao seu governo. Percebendo as dificuldades com a União, os governadores dos nove estados decidiram criar o Consórcio Interestadual de Desenvolvimento Sustentável do Nordeste, ou simplesmente Consórcio Nordeste. Trata-se de uma iniciativa para ampliar a articulação entre os estados, atrair investimentos e alavancar projetos de forma integrada, visando promover o desenvolvimento sustentável e solidário.

Em março de 2020, foram identificados os primeiros casos de Covid-19 no Brasil. A reação imediata do presidente da República foi a negação da gravidade da doença. Ele dizia que, em pessoas saudáveis, o Coronavírus causaria, no máximo, uma “gripezinha”. Aconselhou a população a continuar a vida normal para não prejudicar a economia. Foi então que o Consórcio Nordeste decidiu criar o Comitê Científico de Combate ao Coronavírus (C4), com cientistas indicados pelos governos estaduais. O C4 formou nove subcomitês, integrados por cientistas voluntários dos vários estados, especializados nos temas relacionados à doença, como Epidemiologia, Virologia, Vacinas e Modelagem Matemática.

Logo o C4 passou a emitir boletins com recomendações de ações para conter o espalhamento do novo Coronavírus, informações para as equipes de saúde, análises de cenários e riscos etc., com base no melhor conhecimento científico existente. Passados dois anos e meio do início da epidemia de Covid, após quatro ondas do surto da doença, o Comitê emitiu 25 boletins com análises da situação em cada estado e com recomendações para os governantes. Dentre as recomendações se destacaram medidas restritivas de distanciamento social, lockdown nas capitais e restrição de tráfego nas rodovias, visando deter a proliferação do vírus, a rejeição da cloroquina no tratamento da doença, devido à ausência de evidências de sua eficácia, a criação de brigadas emergenciais de saúde, o aumento da proteção das equipes de saúde, a ampliação da testagem, o aprimoramento dos protocolos ambulatoriais e medidas para acelerar a vacinação dos nordestinos.

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As recomendações do C4 foram acatadas pelos governos do Nordeste, que tomaram medidas efetivas para sua implementação. Resultado: apesar de a região ser uma das mais pobres do País, com enormes desigualdades sociais, ela teve o melhor desempenho no enfrentamento da crise sanitária. Após 30 meses do início da pandemia, quando o número de mortes pela Covid no País chega a quase 700 mil, com média de 330 por 100 mil habitantes, uma das mais altas do mundo, as mortes no Nordeste totalizam 133 mil, com média de 237/100 mil habitantes, a menor de todas as regiões. O Maranhão, estado com enormes dificuldades socioeconômicas, tem a menor taxa do País, 155/100 mil habitantes.

O sucesso da ação conjunta dos estados e do trabalho do C4 no combate à pandemia motivou o Consórcio a instituir Câmaras Temáticas, visando sistematizar ações conjuntas em áreas estratégicas. Cada Câmara é integrada pelos secretários estaduais da área, presidida por um governador e assessorada por um Comitê Científico formado por voluntários especialistas na área. Em 2021, foram criadas Câmaras Temáticas de Saúde, Agricultura Familiar, Assistência Social, Meio Ambiente, Educação, Ciência e Tecnologia, Cultura, Energias, Turismo e Gestão Pública, dentre outras.

A eleição do presidente Lula abre uma janela de oportunidades para o Nordeste. Vários desafios que deverão ser enfrentados no futuro próximo exigem uma estreita articulação da região com o governo federal, o que não ocorreu nos últimos anos. Para vencer os desafios a região conta com o Consórcio Nordeste, mas o governo precisará redefinir a institucionalidade e os instrumentos dos órgãos federais que atuam na região, como ­Sudene, Codevasf e BNB. Em conjunto, eles deverão construir um leque de políticas públicas baseadas nas experiências exitosas dos anos iniciais deste século, visando vencer as dificuldades, valorizar as potencialidades e promover o pleno desenvolvimento econômico e social da região. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1240 DE CARTACAPITAL, EM 28 DE DEZEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Fênix nordestina”

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