Opinião

Falta um espaço participativo no Banco Central, na Defesa e nas Relações Exteriores

O diagnóstico aponta que não há propriamente política para esses temas, apenas ações táticas, desprovidas de estratégia orientadora

Roberto Campos Neto e Paulo Guedes, em evento no Banco Central do Brasil. Foto: Raphael Ribeiro/BCB
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“Por esse motivo, nunca me canso de enfatizar isso, as intervenções e os projetos devem ser planejados e implementados em resposta ao clamor das pessoas e de suas comunidades; não podem ser impostos de cima para baixo ou por instâncias que busquem apenas seus próprios interesses ou lucros” – Papa Francisco, aos representantes dos países membros da 43ª Conferência da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura.

Naquela assembleia, Francisco também instou os participantes a evitarem o perigo da “colonização ideológica”.
Um dos livros basilares da cultura chinesa, o I Ching, registra que as religiões constituem as sínteses das culturas.
Francisco, ao longo do pontificado, tem cristalizado vários conceitos, demonstrando a clarividência de seu pensamento.

A citação acima constitui exemplo de como o Pontífice exara conceitos políticos, de forma simples, efetiva e compreensível urbi et orbe (para as cidades e para o mundo).

A sintonia entre Lula e ele fica clara também nesse campo: a democracia participativa está no coração de ambos e neste terceiro mandato o presidente tem dado renovada atenção à participação popular nas políticas públicas.

O mote: “Política pública boa é política pública participativa” parece orientar seu governo.

Entretanto, o caminho ainda é longo e, por vezes, tortuoso.

Em três instâncias de governo, fundamentais, não há qualquer espaço participativo: Banco Central, Defesa e Relações Exteriores.

A ausência de participação nesses espaços faz com que não haja propriamente política para esses temas – todos os três de primeira importância-, existindo apenas ações táticas, desprovidas de estratégia orientadora.

No caso das Relações Exteriores, chega-se a paroxismos, como a condenação de um país, a Nicarágua, em foro do qual a nação sequer participa, a Organização dos Estados Americanos.

Por óbvio, esteve aquele país impedido de qualquer tipo de defesa.

Essa prática contradiz não apenas os princípios mais basilares das relações internacionais, mas também do próprio direito interno e internacional, tanto público quanto privado.

Como pôde uma instituição (que se julga excelente) ter desconhecido preceito legal de mais de dois mil anos, consagrado pelo próprio Direito Romano, base do direito ocidental?

No Evangelho de João vemos a indagação de Nicodemos, a propósito da injusta condenação do Cristo: “Será que a nossa Lei julga alguém antes de ouvir e saber o que ele faz?” (7,51).

Em O Evangelho de João – o caminho da vida (editora Paulus), José Bortolini complementa, sobre aquele injusto julgar: “De fato, Jesus será condenado à morte pelo poder religioso (Sinédrio) que consegue manipular o poder político (Pilatos). O poder dos poderosos é um poder de morte, e não de vida” (na interpretação do Evangelista).

Essa é a síntese do lavajatismo cultural, que ainda demorará anos para decantar, das nossas instituições e sociedades ao Sul do Mundo: condena-se com base nos interesses políticos daquele 1% que detém mais riqueza do que os outros 99% da população da Terra.

O triste é verificar que órgãos de países supostamente democráticos, que sofreram na pele as injustiças do lavajatismo, possam reproduzir essa lógica nefasta, de morte, no campo internacional.

Pior, quem são os parâmetros internacionais da justiça e da democracia?

A França, pátria dos direitos humanos, assiste ao assassinato de um jovem de origem argelina, Nael, menor de idade, de 17 anos, por um policial que sequer portava uma câmera peitoral.

O homicídio voluntário só pôde ser denunciado graças a uma filmagem anônima de vídeo, que mostrou a cena do assassinato em toda a sua brutalidade.

Como pode um país do G7, uma das sete maiores economias do mundo, potência nuclear, ter policiais que não portam simples câmeras no peito?

Do outro lado do Canal da Mancha, a Suprema Corte impediu o plano bizarro do primeiro-ministro (melhor seria, sinistro) inglês de reexportar demandantes de refúgio no Reino Unido (desunido também lhe cairia melhor) para Ruanda.

A Corte apenas certificou o óbvio: que Ruanda não tem condições de garantir segurança e bem-estar mínimo aos refugiados.

O desgoverno inglês, obviamente, recorrerá…

Vale notar que o berço do neoliberalismo, o mesmo Reino, em que Margareth Thatcher imperou a ferro e fogo nos anos 80 e 90, onde – por consequência – existe uma das maiores populações de rua, com favelas sob as pontes, simplesmente quebrou na semana passada.

Sim a dívida desse outro membro do G 7, também potência nuclear, ultrapassou 101% do próprio PIB.

O que disse a imprensa local a respeito, sempre tão defensora daquele modelo político e econômico? Não era eficiente? Se era, por que o país foi à bancarrota, apesar de todas as riquezas de que se apropria ilegitimamente, seja aqui, por meio de petroleiras, seja se locupletando – por meio de bloqueios ilegítimos – dos recursos bilionários de países como Venezuela e Rússia, depositados em seu não confiável sistema bancário? Alguém viu alguma capa de The Economist estampando: Disastrous Economy, com o Big Ben ao fundo?

E o que dizer de toda a Zona Euro? (desculpem o duplo sentido). O Velho Continente apresentou as maiores taxas de desinvestimentos no mercado acionário desde o início do ano: a bagatela de 27 bilhões de dólares, registrando a fuga de 4,6 bilhões, apenas na semana passada…

A repressão dos anseios populares, a longo prazo, explode (vide a própria Revolução Francesa). Após a morte de Nael, mais de 150 prefeituras e delegacias foram atacadas na França.

Mesmo a imprensa francesa, autocensurada, não se exime de associar a revolta popular – que já levou a prejuízo de milhões de euros em bens públicos e privados depredados – a medidas tão antipopulares como o aumento da idade de aposentadoria de 62 para 64 anos na França, a despeito da maciça oposição popular e parlamentar. Por isso, Macron decidiu, ilegitimamente, outorgá-la, pois a promulgação ficara impossível, não havendo a mínima maioria parlamentar para sua aprovação.

Como dissera Jesus, quem não tinha pecado, que atirasse a primeira pedra. Também esse axioma se emprega perfeitamente para a cena política internacional, na atualidade.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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