Lys Sobral Cardoso

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Procuradora do Trabalho e coordenadora nacional da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Conaete)

Opinião

As condições para combater o trabalho escravo estão piores, escrevem procuradoras

Falta combater o desemprego, mas antes a pobreza extrema nas cidades, escrevem as procuradoras Lys Sobral Cardoso e Cristiane Sbalqueiro

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A história do Brasil foi construída na base da opressão. Embora não tenhamos sido o último país a abolir a escravidão no mundo -“ganhamos” do Zanzibar, da Etiópia, da Arábia Saudita e Mauritânia – fomos o que mais recebeu escravos no mundo. E quando a escravidão acabou, adivinha quem recebeu indenização? Os proprietários de escravos.

Era isso que previam a Lei do Ventre Livre e a Lei do Sexagenário. E, mesmo após a aprovação da Lei Áurea, continuaram as discussões no Congresso para estabelecer indenizações aos proprietários de terras (foi para impedir isso, diz-se, que o então ministro Rui Barbosa mandou queimar os registros da escravidão no País).

Será que o Brasil mudou muito depois disso?

Há 17 anos, três auditores fiscais do trabalho e um motorista do Ministério do Trabalho foram assassinados mediante emboscada na zona rural de Unaí. O motivo? Ousar fiscalizar uma denúncia de trabalho escravo. O mandante, Norberto Mânica, réu confesso e irmão do prefeito da cidade, ainda está em liberdade.

 

Foi esse caso que motivou a instituição, pela Lei 12064/2009, do Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo no Brasil, coincidindo com o dia nacional do Auditor-Fiscal do Trabalho.

E olha que o Brasil vinha num processo de franca evolução no combate a essa vergonha nacional, após vários assassinatos no campo serem denunciados pela Comissão Pastoral de Terra. Em 1995, o governo brasileiro reconheceu a persistência do trabalho escravo no país e determinou a constituição dos grupos especiais de fiscalização móvel, integrados por auditores e auditoras-fiscais do Trabalho, procuradores e procuradoras do Trabalho, policiais federais ou policiais rodoviários federais, procuradores e procuradoras da República.

Melhoramos, mas a mentalidade escravagista não saiu das mentes e dos corações de muitos brasileiros

Após a implementação do primeiro Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, em 2003, a eficácia dos trabalhos deu um salto, com pelo menos 10 anos de fiscalizações turbinadas. Parecia que o Brasil finalmente acertaria contas com sua história.

Tanto que, em 2014, promulgou-se a Emenda 81, que alterou o artigo 243 da Constituição, para prever que as terras nas quais fosse flagrado o trabalho escravo seriam expropriadas sem qualquer indenização para o proprietário e destinadas à reforma agrária ou programas de habitação popular.

Mas o que aconteceu a seguir foi mesmo o ponto de virada de um período de nítido progresso social. É claro que o Brasil mudou desde a abolição da escravatura. Melhoramos, mas a mentalidade escravagista não saiu das mentes e dos corações de muitos brasileiros.

A emenda à Constituição provocou um acirramento na briga para se alterar o conceito legal de trabalho escravo e os acontecimentos políticos que se seguiram levaram ao cenário que vivemos hoje: desregulamentação do direito do trabalho, aniquilação das entidades sindicais, precarização ainda mais acentuada da fiscalização do trabalho, revisionismo histórico, abandono do povo e das políticas sociais. Gente acusando os próprios negros de não terem resistido à escravidão.

As condições para o combate ao trabalho escravo estão muito distantes do ideal e bem menos adequadas do que já foram

O Ministério Público do Trabalho é instituição de defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis no mundo do trabalho. Integra os Grupos de Fiscalização Móvel para combate ao trabalho escravo desde sua criação, atuando corpo a corpo com os auditores-fiscais nas ações de repressão.

É também o MPT que propõe ações na Justiça do Trabalho para garantir que os escravagistas modernos paguem as indenizações devidas pelo crime odioso praticado contra a dignidade da pessoa humana.

No momento, as condições para o combate ao trabalho escravo estão muito distantes do ideal e bem menos adequadas do que já foram.

Para começar, aproximadamente 50% dos cargos dos auditores-fiscais do trabalho estão vagos. No último concurso, em 2013, assumiram pouco mais de 100 auditores. Há mais de 1600 vagas em aberto. A inspeção do trabalho está morrendo por asfixia, e só consegue se manter pela luta incansável daqueles que sabem da importância do seu trabalho, contra todos os obstáculos.

O MPT é sensível a essa demanda e a Procuradoria-Geral do Trabalho atribuiu prioridade absoluta ao tema, mobilizando e garantindo a participação dos procuradores e procuradoras do trabalho em todas as fiscalizações e aprimorando o trabalho de inteligência para otimizar o resultado das expedições.

Os procuradores atuam articulados para garantir o sucesso das operações, buscando o bloqueio judicial de bens dos escravagistas, para que estes respondam o mais rápido possível pelas violações de direitos causados. Afinal, é preciso pagar o hotel e a alimentação dos trabalhadores resgatados e assegurar o recebimento de indenizações em valor suficiente para compensar a gravíssima violação de direitos humanos e impedir a revitimização.

Sim, porque, infelizmente, não é incomum que um trabalhador seja resgatado mais de uma vez, em operações diferentes, por não ter sido acompanhado depois do resgate. Algumas pessoas têm tão poucas oportunidades de trabalho e estão tão abandonadas que lhes resta simplesmente torcer para que a próxima oferta não seja mais uma cilada.

Falta política pública para acabar com o desemprego estrutural no País, mas antes disso faltam ações para acabar com a pobreza extrema nas cidades onde esse trabalhadores costumam ser arregimentados.

Acabar com o trabalho escravo não é tarefa simples, e por isso havia uma Comissão Nacional integrada por vários ministérios, órgãos, associações e entidades da sociedade civil, com o objetivo de pensar essas políticas e dar cumprimento ao Plano Nacional de Erradicação.

A CONATRAE, que foi extinta e recriada em 2019 no Ministério da Família, agora conta com apenas com oito membros. Sem participação sequer dos ministérios da Educação, da Agricultura e do Meio Ambiente, e sem muita gente que tinha muito a colaborar, a política
pública vai perdendo a força que tinha inclusive tornado o Brasil exemplo internacional a ser seguido pelos outros países.

Infelizmente, o dia 28 de janeiro não é um dia de comemoração. É um dia de protesto. É quando fazemos um balanço do estado da questão e ele não é satisfatório. Nada indica que as condições do País em 2021 sejam melhores.

Estamos em franca decadência econômica e os trabalhadores brasileiros cada vez mais desprotegidos. O desmatamento vem acontecendo em larga escala. Não sei se vocês já pararam para pensar, mas, de um modo geral, o desmatamento é realizado por trabalhadores escravizados.

Essa conjuntura apenas serve para motivar o trabalho dos membros do MPT, que por meio da Conaete – Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, continua planejando ações, apoiando a Inspeção do Trabalho, propondo as ações na Justiça do Trabalho para indenização das vítimas e da sociedade e articulando pela concretização de políticas públicas e oportunidades de vida para as pessoas vítimas do trabalho escravo. Não podemos parar.

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