Opinião
Falsa autonomia de Feder transforma diretores em carrascos
Quantos professores serão expulsos de suas escolas simplesmente por acreditarem em uma formação mais crítica, por discordarem do governo de plantão ou por sua atuação sindical?
Depois de quase dois anos infernizando a vida profissional dos diretores escolares da rede estadual paulista, o secretário-empresário da educação Renato Feder anunciou um presente para eles no final do ano letivo de 2025: “autonomia” para escolher o seu próprio “time” para 2026. As aspas destacam os termos usados pelo próprio secretário no vídeo de anúncio da medida, formalizada na Resolução Seduc n. 146/2025.
Sim: trata-se de autonomia gestionária a diretores escolares que, até ontem, vinham sendo sistematicamente ameaçados com a perda dos cargos se não forçassem o uso obrigatório de plataformas digitais por estudantes e professores ou se não fizessem aumentar as notas de suas escolas nas avaliações oficiais.
Com a exposição da ineficácia das plataformas e a falta de critérios na distribuição das punições aos diretores, restou à Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (Seduc-SP) tentar cooptar esses profissionais para praticar o seu próprio esporte favorito nos últimos anos: humilhar os professores da rede estadual.
Como se já não bastassem a indignidade dos salários e das condições do trabalho docente, a perversão dos processos de ingresso na carreira do magistério estadual (além da degradação da própria carreira) e o aviltamento da autonomia didático-pedagógica dos professores por slides e plataformas chinfrins a custo milionário para o erário estadual, o governo Tarcísio criou uma “Avaliação de Desempenho” que transforma o professor numa espécie de judas-em-sábado-de-aleluia.
Contra o neoliberalismo educativo que trata escolas públicas como lojas de roupas, não há saída que não seja coletiva
Nessa malhação, todos apontam os dedos para o professor: os estudantes, os indicadores das plataformas (frequência, conclusão de tarefas e formações online etc.), os exames oficiais da Seduc-SP e do Inep… O sistema atribui a cada professor um painel com luzinhas verdes, amarelas ou vermelhas, a depender do sucesso em cada um dos indicadores. É como numa loja de departamentos, num supermercado ou numa pet shop. A diferença é que, aqui, os diretores escolares, ao final, exercem a sua “autonomia” para analisar o painel e decidir se querem ou não que determinado professor permaneça na sua escola no ano seguinte.
Os professores proscritos pelas luzinhas e pelos diretores são encaminhados para uma espécie de limbo nas Unidades Regionais de Ensino (URE), que realiza entrevistas em vídeo com duração de dez minutos – sim, dez minutos – e atribui uma nota a cada um deles. Os diretores com vagas nas suas escolas assistem a esses vídeos e elegem os docentes que substituirão os exprobrados. Garante o secretário que a nota atribuída pelas URE é apenas indicativa e que a decisão final por habilitar ou desabilitar professores para atuação nas escolas será toda do diretor. Como resultado, no processo de atribuição de aulas de 2026, os docentes expurgados só poderão trabalhar nas escolas cujos diretores tenham valores “alinhados” a si.
A expressão “alinhados” é do secretário Feder, que obviamente não fala em expurgo de professores, mas na avaliação de desempenho como uma dupla “oportunidade” para os diretores de escola. Oportunidade de dar uma devolutiva aos “professores maravilhosos” que se destacaram ao longo do ano e, ao mesmo tempo, de permitir que outros professores (os indesejados) possam “brilhar” em outras escolas sob uma “liderança” que lhes dará melhor apoio. Se não soubéssemos que Feder é secretário da educação da maior rede de ensino do país, poderíamos imaginar que se trata mesmo do gerente de uma rede de lojas orientando os gerentes locais a atuarem como caça-talentos (ou headhunters, como eles devem preferir).
Impactos previstos e imprevistos
Imaginemos um professor concursado sendo expulso da unidade por um diretor escolar comissionado que acabou de assumir o cargo, mas decidiu que o professor e ele não comungam dos mesmos “valores”. Que impactos isso trará para a escola e para vida desse professor, que agora será obrigado a trabalhar em uma escola com a qual não têm nenhuma relação? Quantos professores serão expulsos de suas escolas simplesmente por acreditarem em uma formação mais crítica do alunado, por discordarem das políticas educacionais do governo de plantão ou por sua atuação sindical?
Esta avaliação de desempenho, que mais se assemelha a um linchamento público de professores, é fatal para as relações de confiança entre diretores (e também vice-diretores e coordenadores, para quem os diretores terceirizam algumas decisões) e professores. Que impactos a ansiedade de um possível expurgo terá sobre a saúde mental do professorado?
Imaginemos agora a situação de um diretor escolar que recusou a maioria dos candidatos para a sua escola, e que, após o processo de atribuição das aulas (em que os professores escolhem apenas as escolas com valores “alinhados”), ficou sem professores para várias disciplinas. Esse diretor será, no mínimo, forçado a rever a sua decisão, ou terá a sua “autonomia” suspensa pela Seduc-SP, que ao fim e ao cabo tem a obrigação de colocar professores em todas as salas de aula da rede de ensino. E como ficarão as relações entre os diretores que expulsarem os professores e tiverem que voltar atrás nas decisões?
Para transferir o desgaste com o professorado e as responsabilidades morais e legais desta absurda avaliação de desempenho é que a Seduc-SP, agora, reivindica a cumplicidade dos diretores no linchamento público dos professores. Que nenhum diretor se iluda com a surpreendente benesse da “autonomia” a esta altura do ano. Ela é apenas temporária. Passada a atribuição das aulas, todos os diretores voltarão a ser ameaçados de expurgo por parte da Seduc-SP.
No limite, os diretores comissionados de agora poderão perder seus cargos para voltarem às salas de aula como professores e, no final do próximo ano letivo, serem defenestrados de suas escolas por vingança dos expurgos que eles mesmos praticaram em 2025. É exatamente esse tipo de ódio entre educadores que a “avaliação de desempenho” da Seduc-SP visa fomentar.
A única forma de deter essa máquina moedora de gente é reatar as relações de confiança que ela quer esgarçar. Contra o neoliberalismo educativo que trata escolas públicas como lojas de roupas, não há saída que não seja coletiva. Diretoras e diretores: em vez de excluírem seus colegas professores por capricho, conversem com eles!
À exceção das situações-limite que obrigam a reformulação das equipes escolares por decisão dos gestores, a conversa franca refaz identificações, reconstrói relações e fortalece a escola pública contra os seus verdadeiros linchadores. Para a malhação desses Judas, reservemos não o Sábado de Aleluia, mas o domingo do primeiro turno das eleições de 2026.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.
O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.
Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.
Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.



