Luana Tolentino

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Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

Fala da senadora Simone Tebet na CPI da Covid expõe nossa herança escravocrata

Fica a torcida para que a trabalhadora que presta serviços à senadora não seja mais uma vítima da pandemia e da política de morte

Senadora Simone Tebet (MSB-MS). (FOTO: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
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Assim como milhares de brasileiros, tenho acompanhado com bastante atenção as interpelações e depoimentos na CPI da Covid, que objetiva investigar omissões e ações criminosas que desaguaram na carnificina que paira sobre o Brasil. No momento em que escrevo esse texto, mais de 444 mil pessoas perderam a vida em decorrência do coronavírus.

Enquanto ouço as falas de senadores, ex-ministros, secretários e do atual ministro da Saúde, oscilo entre a euforia e a vergonha. Em diversos momentos, fico embevecida por doses de esperança. Em tantos outros, me sinto desrespeitada. Às vezes, sou tomada pela raiva. Desligo a televisão. No dia seguinte, ligo novamente. Em meio à sensação de choque e de desânimo total, penso: como chegamos até aqui? Quantas mortes poderiam ter sido evitadas? Quando sairemos dessa situação? É possível descer a um nível ainda mais baixo de sordidez e de desprezo pela vida humana?

Na quinta-feira, segundo dia do depoimento do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, sintonizei a TV Câmara no momento em que a senadora Simone Tebet (MDB) usava seus minutos de fala para criticar a atuação do general. A parlamentar do Mato Grosso do Sul lembrou daqueles que foram a óbito em razão da falta de vacinas e de medidas capazes de mitigar o avanço da pandemia. Lembrou ainda de uma funcionária que, segundo ela, está internada com parte do pulmão tomado pelo coronavírus.

Disse Simone Tebet: “Hoje, neste momento, estou com uma funcionária que está comigo há 23 anos, que mora na minha casa, que morou na minha casa por muito tempo, que me ajudou a criar as minhas filhas, num leito de hospital”.

Reconheço que, durante sua explanação, a senadora da bancada ruralista foi incisiva ao questionar Pazuello a respeito do morticínio ocorrido durante sua gestão à frente do Ministério da Saúde. Assim como em relação à indolência ou ao descaso no processo de negociação de compras de vacinas, que como ela ressaltou, além de vitimar milhares de brasileiros, nos impede de retomar a vida com algum grau de normalidade, como já ocorre em outros países. Contudo, é preciso chamar atenção para o ponto em que ela trata do estado de saúde da trabalhadora doméstica que lhe presta serviços há mais de duas décadas.

Ao dizer que a funcionária “mora, morou por muito tempo em sua casa”, em uma fração de segundos, Simone Tebet expôs a mentalidade escravocrata que estrutura o País, que ainda impõe a mulheres, sobretudo negras, a condição de residir nas casas em que trabalham, tal qual ocorria no período anterior à abolição. A PEC das Domésticas, emenda constitucional que regulamentou o trabalho doméstico no país, em 2013, não prevê a moradia das empregadas na residência de seus patrões. Afinal, tal aberração, que não ocorre em outras profissões, predispõe a trabalhadora a ter seus serviços requisitados continuamente, a qualquer hora do dia ou da noite, em um abuso evidente.

As palavras de Simone Tebet reforçam o estado de vulnerabilidade a que estão sendo submetidas as mulheres que têm como função arrumar casas, lavar privadas, limpar quintais, cozinhar e cuidar de crianças. Não custa lembrar que a primeira vítima da Covid-19 no Brasil foi uma trabalhadora doméstica negra, infectada pela patroa que curtiu férias na Europa. Como bem lembrou a deputada federal Benedita da Silva (PT), que antes de ingressar na vida política também exerceu a função que mais se aproxima do nosso passado escravagista, faxineiras e diaristas não viajam para o exterior. “O lugar mais longe que elas vão é para a Baixada Fluminense”, disse Benedita ao se referir às que residem no Rio de Janeiro.

No decorrer dos 14 meses de pandemia, que são alvo de investigação da CPI, vieram à tona casos de trabalhadoras expostas a condições análogas à escravidão, dentre eles, certamente o mais emblemático, o de Madalena Gordiano, que durante quase quarenta anos foi explorada por uma família do interior de Minas Gerais.

Nesse período, a exemplo do que foi dito pela senadora Simone Tebet, emergiram também discursos e ações que evidenciam o apreço da sociedade brasileira pelo passado escravocrata que nos assombra e insiste em não passar. Embora não seja considerado um serviço essencial, ao longo do isolamento social, patrões e patroas não abriram mão da presença das trabalhadoras domésticas em seus lares, expondo-as à contaminação.

Não foram poucos os representantes das elites econômicas que, em entrevistas, afirmaram que o “lado bom da pandemia” foi descobrir que sabiam arrumar a cama e lavar a louça. Há algumas semanas, Daniel Cady, marido da cantora Ivete Sangalo, acusou a mulher que presta serviços em sua casa de ser a responsável pela transmissão do vírus para sua família. O nutricionista ainda reclamou de ter que conceder folgas a ela.

 

A “indignação” de Cady em relação aos direitos das trabalhadoras domésticas vai ao encontro da reportagem publicada pelo jornal baiano Correio da Tarde que, em abril, contou a história de Carine*, que passou oito meses na casa de uma família de classe média alta de Salvador sem um único dia de folga, pois era vista como “ameaça de contaminação pelo coronavírus”. Em depoimento, assim como a escritora Carolina Maria de Jesus, Carine definiu o espaço em que dormia como “quarto de despejo”. Nele não havia televisão ou acesso à internet. Carine só podia sair para fazer compras de interesse das patroas. Nas poucas vezes que foi para casa, era proibida de ter qualquer contato com os pais.

Além de apontar culpados pela tragédia que se abate sobre nós e mostrar que em nenhum momento o atual governo levou em consideração a vida dos brasileiros, a CPI da Covid prova também a vivacidade da nossa herança escravocrata. As palavras de Simone Tebet não me deixam mentir. Fica a torcida para que a trabalhadora que presta serviços à senadora não seja mais uma vítima da pandemia e da política de morte que toma conta do País.

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