Justiça

Extinção da Rede Cegonha é uma grave violação aos direitos das mulheres

Em uma canetada, Ministério da Saúde extingue com uma das mais avançadas políticas direcionadas a mulheres grávidas da história do país

Rede Cegonha, extinta no Governo Bolsonaro, era um programa de apoio para uma gestação vivenciada com segurança e dignidade da mulher, além de zelar pelos devidos cuidados com o neonato. Foto: Rodrigo Nunes/Ministério da Saúde
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A Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher foi aprovada em 1979 e ratificada pelo Brasil em 1984.

Emerge, nesse contexto, a necessidade de reconhecimentos de direitos específicos, em que se pode mencionar como exemplo o reconhecimento da dimensão de direitos reprodutivos e sexuais da mulher como direitos humanos indivisíveis.

Nesse sentido, as declarações e plataformas de Cairo (1994) e de Beijing (1995) representaram um grande avanço na conceituação de direitos sexuais e reprodutivos. Muito embora não possuam a força normativa de tratados internacionais, tais documentos constituem-se em importante fonte principiológica do ordenamento jurídico internacional dos direitos humanos da mulher. Os princípios 4 e 8 da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, do Cairo, de 1994 recomendam  

“Promover a eqüidade e a igualdade dos sexos e os direitos da mulher, eliminar todo tipo de violência contra a mulher e garantir que seja ela quem controle sua própria fecundidade são a pedra angular dos programas de população e desenvolvimento. Os direitos humanos da mulher, das meninas e jovens fazem parte inalienável, integral e indivisível dos direitos humanos universais.()…)”, 

Bem como que

”Os estados devem tomar todas as devidas providências para assegurar, na base da igualdade de homens e mulheres, o acesso universal aos serviços de assistência médica, inclusive os relacionados com saúde reprodutiva, que inclui planejamento familiar e saúde sexual. Programas de assistência à saúde reprodutiva devem prestar a mais ampla variedade de serviços sem qualquer forma de coerção (…).

Verifica-se, por meio de tais princípios, que as mulheres possuem o direito individual de decidir sobre o exercício da maternidade, assim como possuem, em face do Estado, o direito à informação e acesso aos serviços para exercer seus direitos e responsabilidades reprodutivas.

Neste contexto, a humanização do parto é um modelo de assistência que preconiza um novo ponto de vista sobre a relação médico-paciente, com a observância do cuidado individualizado, levando-se em conta os direitos humanos da mulher, com a adoção de  intervenções apenas em casos de necessidade justificada de  acordo com a atual  medicina baseada em evidências, priorizando-se a vontade e protagonismo da mulher no parto.

O parto é um fenômeno natural da vida reprodutiva e familiar e tradicionalmente ocorria em ambiente familiar e comunitário, com a assistência mútua de mulheres. Porém, em determinado período recente da história, desenvolveu-se o pensamento de que haveria inabilidade do corpo da mulher para essa tarefa, fazendo-se necessária a intervenção da medicina, seja por instrumentos interventivos, seja por práticas invasivas e violentas.

Estudos relatam que já houve práticas que amarravam as mulheres ou aplicavam sedativos que afetavam, inclusive, a sua memória do ocorrido, havendo assim uma completa alienação traumática da mulher nesse processo.

O medo das intervenções dolorosas e a instauração de uma cultura de agressividade e passividade da mulher no parto, levou algumas mulheres, (que possuem o privilégio social da escolha) a optarem por evitar esse sofrimento com a prática de cesáreas eletivas, o que, de certo modo, colocou a hospitalização em  protagonismo, cabendo ao médico escolher data, hora e lugar para que a mulher tivesse um filho.

Sobre a extinção da Rede Cegonha

A Rede Cegonha foi criada em 2011, pela portaria número 1.459/2011, tendo sido uma grande referência na aplicação dos ditames da humanização do parto na rede pública com a valorização de profissionais como enfermeiras obstétricas e parteiras.

Era uma política pública voltada para o cuidado integral da mulher e sua família, através de rede multidisciplinar, com a atenção humanizada no pré-natal, parto, nascimento, puerpério, atenção integral à saúde da criança, além do sistema logístico, com transporte sanitário e regulação.

Tratava-se de uma iniciativa que garantia o direito ao planejamento reprodutivo e um processo de gestação vivenciado com segurança, protagonismo e dignidade da mulher, além de zelar pelos devidos cuidados com o neonato. A rede observava a principiologia do SUS, com universalidade, equidade e atenção integral à saúde, tendo como um de seus principais pilares o enfrentamento da morbimortalidade materna e infantil, sobretudo das camadas sociais mais vulnerabilizadas.

Dilma Rousseff em lançamento da Rede Cegonha em Minas Gerais, em 2011. Foto: Erasmo Salomão/Ministério da Saúde.

Contudo, o Ministério da Saúde publicou a Portaria nº 715, de 04/04/2022, que instituiu a Rede Materno e Infantil (RAMI), a qual basicamente destituiu a Rede Cegonha, dando protagonismo à atuação do médico obstetra, excluindo os profissionais da enfermagem obstétrica e obstetrizes, além da extinção de centros de parto normal peri-hospitalares, mais conhecidos como casas de parto.

O advento desta portaria traz consigo retrocessos relacionados à perda de uma melhor qualificação das ações e serviços de saúde, do combate a violência obstétrica, da redução da medicalização e mercantilização do parto, além da extinção do uso de indicadores técnicos que possibilitavam visualizar o cuidado para com a gestação, o parto e o nascimento. Dessa forma, não será possível obter parâmetros para a avaliação de melhoria na assistência à saúde da mulher.

Estamos vivendo um cenário de grave crise relacionada aos direitos reprodutivos.

O desmonte da Rede Cegonha e a modificação na caderneta da gestante são medidas mais recentes adotadas pelo governo federal, as quais implicam em precarização dos direitos reprodutivos das mulheres e consequente aumento da vulnerabilização de mulheres negras, as quais são as mais afetadas pela violência obstétrica e pela negativa de acesso a políticas públicas de saúde reprodutiva e proteção da maternidade.

A comunidade jurídica e a sociedade civil devem participar desse debate, eis que tais ofensivas autocráticas implicam em grave violação dos direitos humanos de mulheres e recém nascidos.

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