Ilona Szabó

Cofundadora e Presidente do Instituto Igarapé.

Maria Eduarda Pessoa de Assis

Advogada e Assessora Jurídica do Instituto Igarapé

Opinião

Espera-se que a desumanidade de Bolsonaro seja condenada

A atuação do governo federal, como constatado pelos juristas, pode ser enquadrada em crimes contra a humanidade

Foto: EVARISTO SA / AFP
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Na terça-feira, dia 26, foi aprovada a versão final do relatório da CPI da Covid. Foi recomendado o indiciamento de 78 pessoas, incluindo o presidente Jair Bolsonaro, apontado como autor de nove crimes diferentes. Dando indícios de que não pretende mudar sua postura negacionista diante do resultado da CPI, apenas alguns dias antes, em uma de suas lives, Bolsonaro citava “relatórios oficiais do governo do Reino Unido” segundo os quais pessoas totalmente vacinadas estariam “desenvolvendo a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida [Aids] mais rápido do que o previsto”. Não sem razão, perguntamos: e agora, José?

A peça investigativa produzida pela CPI não é vinculante, tampouco tem poderes acusatórios. Agora o relatório será enviado à Procuradoria Geral da República, para a condução das investigações contra o presidente e outras autoridades com foro privilegiado. A CPI entregará o resultado de seus trabalhos não apenas ao Ministério Público, mas encaminhará cópias à Polícia Federal, à Receita e, finalmente, ao Tribunal Penal Internacional.

A constatação de que nossas instituições não estão em pleno funcionamento não é exatamente uma novidade, o que pode gerar certa desesperança em relação à responsabilização dos envolvidos na gestão criminosa da pandemia da Covid-19 no Brasil. A atuação do governo federal, no entanto, como constatado pelos juristas que auxiliaram os trabalhos da Comissão, pode ser enquadrada em crimes contra a humanidade. E é nesse ponto que mudamos de cenário.

Os crimes contra a humanidade, apesar de previstos no Estatuto de Roma, de 1998, ratificado pelo Brasil e introduzido com status constitucional ao direito interno pela Emenda Constitucional 45, não foram traduzidos em lei penal, embora tenhamos um PL tramitando há mais de uma década no Congresso sobre o tema. A inexistência de previsão legal que tipifique a conduta prevista no Estatuto como crime contra a humanidade impede que haja julgamento e, por via de consequência, condenação, como garante o princípio da legalidade. Nullum crimen nulla poena sine previa lege.

E é justamente quando as portas da Justiça brasileira se fecham – eis que não é possível ajuizar uma ação penal por um crime inexistente no direito pátrio – que as portas do Tribunal Penal Internacional se abrem. Com elas, ressurge a esperança de que o mundo esteja observando a sobrevida de uma democracia enfraquecida que resiste a duras penas em meio a centenas de milhares de mortes evitáveis.

Os crimes contra a humanidade, portanto, podem ser julgados pelo Tribunal Penal Internacional, organização independente que julga apenas indivíduos e não países. No caso brasileiro, duas situações específicas se enquadram na definição de crime contra a humanidade, mais especificamente na modalidade extermínio, perseguição e atos desumanos para causar sofrimento intencional. Tais situações dizem respeito à desassistência deliberada das populações indígenas durante a pandemia e à situação caótica em Manaus, que resultou em uma crise sanitária sem precedentes na região.

Diferentemente do genocídio, que visa liquidar um grupo populacional específico, o crime contra a humanidade consiste em uma série de ataques direcionados à população civil de maneira generalizada ou sistemática, gerando mortes, injúrias e sofrimento. Como os atos do Presidente levaram à morte em larga escala de parte da população brasileira, os juristas consultados pela CPI entenderam que seria mais apropriado enquadrá-lo nessa categoria, em razão da dificuldade em comprovar uma intenção clara e específica de exterminar um grupo étnico em particular, no caso, a população indígena.

O genocídio contra os povos indígenas, no entanto, já é tema de duas denúncias no TPI contra Bolsonaro, que trazem uma perspectiva mais abrangente da política anti-indigenista presidencial, que abarca não só a omissão na proteção à saúde desses grupos vulneráveis durante a pandemia, mas toda a política sistemática de não demarcação de terras, desmonte de órgãos de proteção especializados e o atendimento às demandas de ruralistas, garimpeiros e madeireiros em detrimento de direitos fundamentais. Vale lembrar que o genocídio tem previsão legal e é definido pela Lei 2.889/1956, podendo ser julgado pela Justiça brasileira, diferentemente dos crimes contra a humanidade.

A partir de agora, a denúncia ao TPI por crimes contra a humanidade passará por uma triagem inicial, onde será analisada liminarmente a competência da Corte para julgar o caso. Depois, há um exame preliminar, no qual a Procuradoria irá analisar mais detidamente a existência de crimes passíveis de julgamento pelo Tribunal, se o caso é admissível e a gravidade da situação. A gravidade, inclusive, é um filtro que leva em consideração a capacidade limitada que o Tribunal tem em conduzir investigações e julgamentos. A depender das crises humanitárias existentes em determinado contexto, uma violação pode ser considerada mais ou menos grave. Caso se conclua pelo preenchimento de todos os requisitos, o procurador irá pedir autorização a uma sala preliminar composta por três juízes para abrir a investigação. Só então, será iniciado o procedimento investigatório propriamente dito.

Esse processo, apesar de longo e demorado, é uma chance sem precedentes de responsabilização do presidente pela letalidade de suas ações. A ex-juíza e única brasileira que já atuou no TPI de Haia, Sylvia Steiner, entende que o caso brasileiro é emblemático por não se tratar apenas de má gestão de saúde pública, mas utilização de estruturas do Estado para atingir determinadas populações. Segundo Steiner, idealmente, as denúncias contra Bolsonaro – por genocídio e por crimes contra a humanidade – deveriam ser reunidas e avaliadas conjuntamente pelo Tribunal.

Espera-se, portanto, que tamanha desumanidade seja condenada. Nossa memória não falhará no momento de responsabilizar aqueles que mancharam a nossa história.

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