Camilo Aggio

Professor e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais, PhD em Comunicação e Cultura Contemporâneas

Opinião

Entrevista não é campeonato, mas Jair Bolsonaro perdeu   

Jair Bolsonaro se deu muito mal. Não conseguiu produzir sequer matéria-prima para remixagens digitais. Ao contrário, teve que sair em defesa própria

O presidente da República, Jair Bolsonaro (PL), durante sabatina no Jornal Nacional. Foto: Reprodução
Apoie Siga-nos no

Antes de qualquer comentário ou análise que se queira fazer sobre uma entrevista jornalística com Jair Bolsonaro, é preciso considerar um elemento fundamental: não estamos diante de um candidato normal.

E quando acuso anormalidade, não me refiro, sob qualquer hipótese, a qualificações positivas que habitam algumas excentricidades. Refiro-me tão e apenas ao que o presidente é: um sujeito completamente descomprometido com a verdade e inapto para lidar com parâmetros mínimos de honestidade argumentativa. Uma anomalia até para nossos padrões políticos atuais. 

O jornalismo brasileiro não estava pronto para lidar com isso em 2018. Entre espantos e incredulidades que provocaram uma certa paralisia em muitas e muitos jornalistas naquela eleição, desfilava um Jair Bolsonaro com suas toneladas de mentiras, falsos dilemas e revisionismos históricos conduzindo o debate e, não raras as vezes, dando a palavra final. Não foi o que observei no Jornal Nacional ontem. 

A eleição limpa e transparente para Jair Bolsonaro é só aquela que o reconduza à cadeira presidencial

Ao contrário daquele 2018 em que William Bonner e Renata Vasconcelos levantaram bolas valiosíssimas para Jair Bolsonaro – a exemplo da deixa para declamar a carta golpista de Roberto Marinho e se dizer um democrata que louva o regime ditatorial de seus militares – a dupla de entrevistadores parece que adotou uma estratégia mais acertada nesta segunda-feira. A meu ver, consistiu basicamente em definir e seguir, à risca, um roteiro de perguntas sem improvisos e apêndices que poderiam abrir flancos para Jair Bolsonaro mentir ainda mais e conduzir os rumos da entrevista, como acabou fazendo em 2018. 

A meu ver, a tática foi a de criar um muro de contenção, com todos os problemas que isso pode implicar, mas, não custa lembrar: não estamos falando de um candidato normal. A estratégia, no geral, funcionou. Logo de início, Jair Bolsonaro foi confrontado com seus discursos golpistas que levantam suspeitas infundadas sobre a transparência e lisura de nosso processo eleitoral, assim como os ataques a autoridades do Estado. Foi pego na mentira e admitiu, posteriormente, que William Bonner não produzia fake news, mas falava a verdade quando lembrou que o candidato xingou ministros do Supremo Tribunal Federal. 

Contudo, cabe aqui salientar um detalhe: ao contrário do que William Bonner sugeriu e algumas personalidades influentes repercutiram, Jair Bolsonaro não se comprometeu a respeitar qualquer resultado eleitoral em momento algum da entrevista. Ele disse, claramente, que respeitará qualquer resultado que advenha de uma eleição limpa e transparente. Sendo nosso sistema eleitoral eficaz, transparente e auditável, meia palavra para bom entendedor basta: a eleição limpa e transparente para Jair Bolsonaro é só aquela que o reconduza à cadeira presidencial. 

Um outro momento digno de destaque ficou por conta da insistência de Renata Vasconcelos num dos episódios de maior delinquência do presidente da República durante a pandemia: a imitação de uma pessoa sufocando em decorrência da Covid-19. A insistência pode não ter surtido um efeito eloquente no ambiente da entrevista, mas gerou um romaria de pessoas buscando pelo episódio no Google e em outras plataformas digitais, como o Facebook. E se foram buscar, é porque não conheciam. Resta saber o que pensaram a respeito após o conhecimento do episódio. A julgar pelas publicações de “esclarecimentos” nos canais oficiais do presidente, a repercussão não foi nada boa. 

O ponto baixo da entrevista, para que se diga o mínimo, disse respeito à economia. A pergunta, feita por William Bonner, já trouxe embutida a justificativa tão absurda quanto implausível que poupou Jair Bolsonaro de apresentá-la. Um desserviço. Para o entrevistador, assim como para o entrevistado, o estado de penúria da economia brasileira, os mais de 30 milhões de famintos e outros tantos milhões jogados na insegurança alimentar, tem menos a ver com as políticas do ministro da economia do que com a pandemia e a Guerra na Ucrânia. Trata-se, a meu ver (posso estar errado), de uma manifestação eloquente de uma linha editorial alinhada com os interesses da empresa: o lema é fingir que Paulo Guedes sequer existe e que sua gestão, e não alguma outra coisa, não é a maior responsável por nossa tragédia social atual. 

Muitos se incomodaram com a falta de, talvez, maior contundência em desmentir Jair Bolsonaro. Eu discordo. Acho que fizeram bem em não se importar muito com isso por duas razões: primeiro, é na discussão sobre mentiras que Jair Bolsonaro encontra uma avenida para mentir mais e, em segundo, para conduzir a entrevista. Outros sentiram falta da abordagem de temas sobre a corrupção. Pode ser, mas tenho minhas dúvidas. Penso em como Jair Bolsonaro esperava esse tema para, obviamente, mentir e desvirtuar a conversa para tratar de mensalões e petrolões da vida, ou seja, para converter a entrevista em peça de campanha. 

Concluindo. Jair Bolsonaro se deu muito mal. Não conseguiu produzir sequer matéria-prima para remixagens digitais do mito lacrador contra a “GloboLixo”. Ao contrário, teve que sair em defesa própria em suas redes contra a repercussão da imitação do enfermo sufocando. Em grupos bolsonaristas no Whatsapp, o clima é de protesto contra os “entrevistadores que não deixaram o entrevistado falar”. 

Não deu empate, não. Jair Bolsonaro perdeu. 

 

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo