O presidenciável Ciro Gomes (PDT) comentou, durante um encontro realizado no dia 31 deste mês com empresários na Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro, a Firjan, que o seu discurso sobre economia a estava direcionado à “gente preparada”. Posteriormente, em tom jocoso, completou: “Imagina eu explicar isso na favela…”
Após inúmeras críticas, Ciro afirmou em seu perfil do Twitter que havia sido “vítima da má fé” e que “não menosprezou a sabedoria popular”. Esta não é, entretanto, a primeira vez que o candidato utiliza termos ou referências pejorativas às classes mais pobres ou desprivilegiadas.
No primeiro debate presidencial das Eleições 2022, transmitido pela Rede Bandeirantes no dia 28 deste mês, o candidato disse que “o Brasil não é fundão da África”, afirmando que, diferentemente do continente africano, o Brasil possuiria grande potencial agrícola, não havendo justificativa para o acesso precário dos brasileiros aos alimentos produzidos em solo nacional. A declaração foi considerada preconceituosa e ganhou repercussão internacional, tendo sido rebatida por Vensam Iala, modelo guineense e fundador da marca VistoÁfrica, que dirigiu a palavra ao presidenciável em um vídeo no TikTok.
“[…] te aconselho o seguinte: eu sei que você tem muito apreço pela França, mas da próxima vez que for falar da África, não vá pra Paris não, vá para Guiné-Bissau, vá para o Senegal. Acredito que o Monumento da Renascença Africana tem muito mais a te ensinar sobre o continente africano e a sua multidiversidade cultural, linguística e étnica. África é poder, é ciência, é tecnologia. África é riqueza, África é vida”, completou.
No próprio vídeo, Vensam ressalta que o termo proferido por Ciro Gomes já foi utilizado em outros momentos, como em sua entrevista no dia 15 de agosto no programa Roda Viva, exibido na TV Cultura. Nessa ocasião, o presidenciável afirmou em frente às câmeras: “O Brasil tem 3% da população do mundo. Aqui morreram 11% da população do mundo. Qual é a explicação? Nós não somos um país do fundão da África, que não tem acesso à vacina, nada”.
Ciro Gomes, assim como parte considerável do povo brasileiro, é fruto de uma educação não-emancipatória, que ensina a observar o outro, o indivíduo que vem de espaços sociais historicamente desprivilegiados, como detentor de alguma inferioridade intelectual ou incapacidade.
Como disse Lélia Gonzalez em seu artigo Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira, o negro e o favelado, ambos sob a lógica da dominação colonial, estão nos patamares simbólicos mais inóspitos. Dessa forma, os signos negativos e a ideia de ignorância cercam o imaginário social desde Frantz Fanon e sua análise do comportamento dos brancos franceses em relação aos negros francófonos da África do norte nos anos 1950 até os dias atuais, nos quais ainda lutamos contra as imagens de controle e os estereótipos sobre pessoas negras e pobres no cenário brasileiro.
No imaginário social elitizado, não há bons frutos nas periferias. A periferia é apenas um espaço destinado à ignorância ou ao conhecimento “popular”. Há uma resistência histórica em admitir o negro, o favelado e o pobre adentrando os espaços acadêmicos e produzindo conhecimento em áreas diversas – por vezes avançando para além do cenário universitário.
O que dizer, por exemplo, do jovem Konrad Dantas, o KondZilla, que conquistou o mundo através das suas produções com foco nas comunidades periféricas, tendo sucessos musicais internacionalmente conhecidos e mais de 1 bilhão de visualizações no Youtube? Konrad, sendo ele um empresário de sucesso, não é o único forte candidato a compreender as empreitadas econômicas de Ciro.
Podemos citar igualmente a própria Anitta, nascida na comunidade de Honório Gurgel no Rio de Janeiro e atualmente uma das maiores empresárias no setor de entretenimento no Brasil e na América do Sul, tendo se tornado uma popstar mundial. No ramo da economia, há iniciativas como o G10 Favelas, presidido por Gilson Rodrigues de Paraisópolis (SP), que recentemente marcou presença na Bolsa de Valores em Nova York com uma comitiva de trinta pessoas, tendo como objetivo arrecadar recursos para o desenvolvimento da economia nas favelas brasileiras.
Além desses formidáveis exemplos, podemos citar também jovens como Fred Ramon, que mesmo enfrentando uma infância e adolescência de pobreza na região de Jaboatão dos Guararapes (PE), foi aprovado em nove universidades norte-americanas. E também a jovem Isabelly Moraes Veríssimo, que saiu da periferia de Cubatão (SP) com aprovação em sete universidades norte-americanas e atualmente ingressa no time de pesquisadores trainees na Universidade de Harvard.
As pessoas citadas ao longo deste artigo, são uma pequena parcela de um todo de indivíduos dedicados, inteligentíssimos e criativos que nascem e lutam nas periferias brasileiras cotidianamente. O projeto de construção do Estado brasileiro perpassa a necessidade de exclusão da maioria, para que tenhamos uma massa de trabalhadores precarizados e disponíveis para a manutenção das engrenagens do capitalismo.
Nas condições de extrema violência policial, racismo, preconceito socioeconômico e sobretudo, desigualdade e opressão sexual, negros e indivíduos periféricos são empurrados para uma sub-vida e ainda assim, fazem o inimaginável em suas comunidades, criando focos de resistência e re-existência nas periferias de todo o país.
Os indivíduos periféricos não são sinônimo de ignorância ou falta de agência, não são uma massa homogênea e com dificuldades de compreensão. É preciso parar com os estereótipos paternalistas e classistas que ditam que negros e residentes de comunidades periféricas não podem compreender determinadas temáticas em razão de seu local social. A favela é um ponto de partida para o mundo. E como uma pessoa que nasceu e se criou em uma favela na Bahia, faço minhas as palavras de Lélia Gonzalez, a plenos pulmões: “a gente vai falar, e vai falar numa boa”*!
*frase adaptada