Luiz Gonzaga Belluzzo

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Economista e professor, consultor editorial de CartaCapital.

Opinião

Endividamento global

Como ensinam as gentes dos mercados, o Estado se intromete onde não deve

Foto: Ozan Kose/AFP
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Diante dos vários estudos ocupados com os riscos da “inflação” da riqueza financeira e do endividamento, ouso oferecer ao leitor da CartaCapital um artigo, já apresentado em outra parte, para acompanhar aquele que trata do mesmo tema na edição desta semana.

Em relatório recente, o Instituto McKinsey cuida de examinar tendências da economia global. O título atribuído à investigação é sugestivo: “O futuro da riqueza e do crescimento está na balança”. Na contramão do antigo programa da TV Globo “Balança Mas Não Cai”, o relatório sugere que as economias estão à mercê dos riscos do Balança e Cai.

Já na abertura, o documento registra as tendências infligidas às economias contemporâneas:

“Entre 2000 e 2021, a ‘inflação’ dos preços dos ativos criou cerca de US$ 160 trilhões em ‘riqueza de papel’. Avaliações de ativos como ações e imóveis cresceram mais rápido do que a produção econômica real. E cada US$ 1,00 em investimento líquido gerava US$ 1,90 em nova dívida líquida. No agregado, o balanço financeiro global cresceu 1,3 vezes mais rápido que o PIB.

Quadruplicou para atingir US$ 1,6 quatrilhões em ativos, consistindo em US$ 610 trilhões em ativos reais, US$ 520 trilhões em ativos financeiros fora do setor financeiro e US$ 500 trilhões dentro do setor financeiro.

A expansão do balanço patrimonial acelerou durante a pandemia, à medida que os governos lançaram apoio em larga escala para famílias e empresas afetadas por lockdowns. Durante 2020 e 2021, a riqueza financeira global em relação ao PIB cresceu mais rápido do que em qualquer outro período de dois anos nos últimos 50 anos. A criação de nova dívida acelerou para US$ 3,40 para cada US$ 1,00 em investimento em nova capacidade produtiva”.

O capitalismo global reassumiu a sua forma mais avançada como economia monetária, cujos agentes detentores dos poderes de criação da riqueza social são tangidos pelo império da acumulação de riqueza sob a forma financeira. Isso não depende da maldade ou bondade dos agentes de mercado, senão de forças sistêmicas que lhes impõem a necessidade de desejar sempre mais para sobreviver às disputas nos espaços do enriquecimento privado.

Escrevi “reassumiu” porque esse comportamento é impulsionado pela dinâmica sistêmica e, ao mesmo, é reforçado por ela. É necessário sublinhar a palavra forma porque a compreensão da dinâmica capitalista como movimento das formas transformadas permite conferir significado preciso à palavra contradição. Contradição como negação da negação no movimento de construção de novas positividades, logo adiante negadas.

É sob esse critério que devemos observar a concomitância entre o avanço tecnológico, pífia evolução na produtividade trabalho, dissolução das relações salariais, queda nos rendimentos médios dos trabalhadores, encolhimento da massa de salários, empregos precários, redução nas taxas de investimento, crescimento explosivo do endividamento privado e público, a valorização incessante dos ativos financeiros e, finalmente, o rápido agravamento das condições ambientais.

Livre, leve e solto em seu peculiar dinamismo, amparado em suas engrenagens tecnológicas e financeiras, o capitalismo promoveu e promove a aceleração do tempo e o encolhimento do espaço. Esses fenômenos, gêmeos, podem ser observados na globalização, na financeirização e nos processos de produção da indústria 4.0.

É intenso o movimento de automação baseado na utilização de redes de “máquinas inteligentes”. Nanotecnologia, neurociência, biotecnologia, novas formas de energia e novos materiais formam o bloco de inovações com enorme potencial de revolucionar outra vez as bases técnicas do capitalismo. Todos os métodos que nascem dessa base técnica confirmam sua razão interna: são métodos de produção destinados a transformar as relações trabalhistas e intensificar a rivalidade empresarial na busca da ocupação e controle dos mercados.

No período da “exuberância irracional”, as taxas reais de juros caíram para o sub-zero. Entre os crentes das expectativas racionais emergiram as celebrações da Grande Moderação. Nesse momento prevaleceram a baixa inflação, a liquidez abundante e a avidez pelo risco. Muitos analistas apontaram o “excesso de poupança global” como causa das transformações nas economias monetário-financeiras capitalistas.

O economista Cláudio Borio, diretor da área monetária do Banco de Compensações Internacionais (BIS), descartou essa pretensão: “esta é uma visão das finanças excessivamente estreita e restrita, pois ignora o papel do crédito monetário(…) poupança e financiamento não são equivalentes em geral”. Lamenta o economista  do BIS: “os fatores financeiros ainda flutuam na periferia do pensamento macroeconômico”. Mais adiante, ele vai insistir nos riscos embutidos no comportamento dos mercados financeiros:

“Isso tem tudo a ver com a forma de expansão do crédito. Ao invés de financiar a aquisição de bens e serviços, o que eleva os gastos e o produto, a expansão do crédito está simplesmente financiando a aquisição de ativos já existentes, sejam eles ‘reais’ (imóveis ou empresas) ou financeiros.”

Causado por desarranjos na oferta global, o ressurgimento da inflação  perturbou as convicções da turma da Grande Moderação. Atemorizados, os Bancos Centrais desataram a subida da taxa de juros para conter o aumento cumulativo de preços, também conhecido como processo inflacionário.

A relação dívida/PIB – não só nos vulneráveis emergentes, mas também Estados Unidos e na Zona do Euro – recebeu novo estímulo para crescer. O denominador (PIB) cresce pouco, mas o numerador se expandiu rapidamente graças à política de metas.

Machucados pelos yields mais elevados que acompanham os papéis de nova emissão, os preços dos títulos privados e públicos acumulados no período anterior sofreram as agruras da marcação-a-mercado. As crises bancárias se sucederam e exigiram uma intervenção pronta e generosa dos Bancos Centrais.

Mais uma vez, tal como na “facilitação quantitativa” da crise subprime, os ativos desvalorizados foram adquiridos pelo valor de face. Para completar o serviço, o Federal Reserve organizou (sic) a aquisição dos bancotes pelos bancões.

Como ensinam as gentes dos mercados, o Estado se intromete onde não deve.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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