Luana Tolentino

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Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

Em meio à carnificina da Covid, só nos resta o medo

‘Mesmo tomando todos os cuidados, sinto o vírus cada vez mais perto. É como se estivéssemos sendo empurrados para um abatedouro’

Foto: Alex Pazuello/Semcom
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Medo. Angústia. Há alguns dias, sou invadida por um sentimento que jamais tinha experimentado ao longo de toda essa pandemia. Vivo em um estado de desassossego permanente. Meus pais, que são idosos, ainda não foram vacinados. A vacina não chega. Há quem diga que, permanecendo o atual ritmo de imunização, levaremos até dois anos para que toda a população receba as duas doses.

Mesmo tomando todos os cuidados e tendo a oportunidade de trabalhar em casa, sinto o vírus cada vez mais perto. É como se estivéssemos sendo empurrados para um abatedouro. Na semana passada, Lena, uma amiga muito querida, contou que perdeu o sogro para a Covid. Insisto em não acreditar. Não sei. Quanto mais próxima é a pessoa infectada, vitimada pelo novo coronavírus, maior é a sensação de estar em meio a um pesadelo que parece sem fim.

Respiro fundo, Aline, minha amiga da vida inteira, conta pelo WhatsApp que o marido também foi infectado e espera por uma vaga no hospital. Um hospital privado, frequentado em grande medida pela classe média/alta de Belo Horizonte: “Lu, aqui está lotado, tudo lotado!”, ela diz.

Cinco dias depois da internação, busco notícias com a Márcia, mãe da Aline. Ao falar do inferno que paira sobre nós, ela sentenciou: “Lu, estamos vivendo com o poder de Deus…”. Enquanto isso, o Diabo em pessoa, sem que ninguém o impeça, não faz outra coisa a não ser atormentar, tirar a paz, tripudiar sobre a nossa dor. Um verdadeiro apocalipse.

E não para por aí. Os pedintes se acumulam na porta da padaria. Crianças, idosos, mulheres envelhecidas pela pobreza e pelo sofrimento. Pedem o pão nosso de cada dia, “qualquer ajuda”. No supermercado, cada vez mais, carrinhos com produtos de baixa qualidade. Diante das gôndolas e dos preços, olhares assombrados e de desalento. No caixa, a comida é parcelada em três vezes no cartão de crédito.

Tento desviar das notícias. Faço uma caminhada, trabalho, cozinho, limpo a casa, leio “Torto arado”, do Itamar Vieira Junior. Troco mensagens com minhas amigas, com os meus parentes, mas, no final, falamos das nossas dificuldades, das nossas incertezas, da saudade de tudo que ficou para trás e não é possível fazer nesse momento.

Tento desviar, esquecer, fugir de tudo, mas é impossível. Somente ontem, mais de 2.200 vidas foram perdidas. Destas, quantas mães foram obrigadas a inverter a ordem natural das coisas e enterrar os filhos? Quantas crianças ficaram órfãs? Em entrevista ao Jornal Nacional, diante do crescimento desenfreado de casos, um médico desolado asseverou: “Estamos enxugando gelo”.

Uma verdadeira carnificina está por vir. Em conversa com jornalistas do UOL, o cientista Miguel Nicolelis foi enfático. Falou em caos funerário, genocídio: “Depois de uma pandemia sem controle, de um colapso sanitário, você tem um colapso funerário. Depois que você não consegue dar conta dos mortos, o lençol freático é contaminado, os alimentos são contaminados (…). Quando você tem um colapso social desse nível, não tem volta. O colapso econômico é completo. (…) As perdas econômicas em decorrência da falta de controle da pandemia vão ser muito maiores do que qualquer perda que um lockdown bem feito no país poderia criar nesse momento, porque a geopolítica da economia vai colocar o Brasil como pária mundial. (…) O Brasil vai colapsar em todas as dimensões se a gente não fizer o que tem que ser feito. (…) Nós estamos chegando a níveis de óbitos considerados genocídio”.

Diante dessas palavras, não há muito o que dizer. Como se pode constatar, o medo que eu e tanta gente tem sentido não é fruto de alarmismo ou exagero. É um medo real, amparado nos fatos e na ciência.

Nesse momento, além de evitar festas, usar máscara quando preciso sair e tentar proteger os meus, me junto à Márcia, que como eu disse, é uma mulher de fé: Que Deus tenha misericórdia de cada um de nós.

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