Yasmin Morais

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Escritora, jornalista em formação pela Universidade Federal da Bahia com mobilidade acadêmica na Université Toulouse 2 Jean Jaurès, integrante do Centro de Estudo e Pesquisa em Análise do Discurso e Mídia (CEPAD) da UFBA e fundadora do projeto Vulva Negra.

Opinião

Ele não é o seu negro

Em uma sociedade racista e classista, homens negros precisam construir formas de emancipação — mas também precisam quebrar o pacto masculino

Créditos: Reprodução GShow
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Se você foi um garoto negro dos anos 2000 no subúrbio de Salvador, é provável que suas referências acerca de homens negros tenham sido fortemente influenciadas pela escravidão, pelo colonialismo e por estereótipos raciais policialescos. O imaginário social brasileiro tem sido afetado pelos resquícios da colonização nas Américas desde a sua fundação, irradiando os seus perversos sintomas para a constituição cultural e discursiva do país. Afinal, o processo de colonização se deu a partir de uma captura que não envolveu apenas o solo, mas também a cultura e o discurso sobre a cultura de uma época.

No contexto em que indivíduos negros foram destituídos de sua humanidade — salientando que o processo de escravização não faz padecer somente o corpo, mas a constituição do Eu, favorecendo não apenas uma fragmentação da personalidade, como também da compreensão social sobre o indivíduo que carrega o estigma. Homens negros foram socialmente construídos a fim de que ocupassem espaços subalternos atrelados ao discurso sobre o corpo; animalescos, viris, detentores de maior força física, iletrados. Se esses discursos racistas perturbavam o imaginários dos senhores e senhoras de engenho no século XVI, o horror prosseguiu nos séculos seguintes através do linchamento de homens negros nos USA durante o período da lei Jim Crow e permanece nos canos dos fuzis que ceifam a vida de homens e meninos negros nas comunidades periféricas do Brasil.

O horror ao homem negro nunca foi superado nas sociedades de origem colonial, pois a intríseca relação de ódio e desejo produz uma estrutura ambígua na qual mulheres heterossexuais e homens homossexuais fantasiam com um pênis imenso, mas temem uma animalidade projetada, uma agressão quase fetichista e o desejo final pela aniquilação desse outro no qual projetam seus anseios mais primários. Nesse imaginário provinciano, o motorista, o recolhedor de materiais recicláveis, o segurança de estabelecimentos… todos como seres unidimensionais, indivíduos-função. A percepção da ambiguidade, de um aprofundamento na personalidade e até mesmo de atitudes individuais, perturba a noção eurocêntrica e racista de que homens negros não possuem agência sobre si, sobre suas construções simbólicas e ações sobre a terra.

O processo de retomada da humanidade, tanto em uma perspectiva individual como no Espírito dos homens negros, perpassa romper o elo com o patriarcado racista e as noções sexistas que os afligem, ao passo de que também lhes permite exercer poder sobre mulheres e crianças negras. Pois, a concepção racista de que possuem menores condições de agência lhes atravessa de modo a colocá-los em um espaço subalterno, mas também tem sido utilizada convenientemente por alguns a fim de defender uma passividade face às demandas feministas negras por divisão equitativa do trabalho doméstico, cuidados partilhados com os filhos, idosos e doentes e responsabilidade afetiva.

Homens negros são indivíduos plenamente capazes, tanto para que não sejam definidos a partir de imagens de controle racistas, como também para que não exerçam a função patriarcal e misógina sobre mulheres e crianças negras. O processo de retomada da humanidade plena está atravessado pela tomada de responsabilidade consciente e pela desconfortável abdicação do pacto masculino. Afinal, ao longo da história do ativismo negro em África e na diáspora, mulheres negras tem se mostrado fortes aliadas e defensoras dos homens negros. Nos perguntamos, desse modo, quando teremos homens negros como aliados plenos na luta contra a exploração sexual infantil, a maternidade compulsória, a cultura do estupro, a afromisognia, o encarceramento de mulheres negras no sistema prisional e tantas outras pautas nas quais nos encontramos sós no front.

A estratégia de negação da existência do privilégio masculino para homens negros tem sido usada desde tempos imemoriais a fim de construir uma retórica que, além de não se sustentar na realidade, constrange mulheres negras por se alinharem ao feminismo e buscarem construir formas de emancipação para si. A produção interseccional da opressão vivida através do racismo e do classicismo não exclui o privilégio masculino. O patriarcado branco não permite ao homem negro um exercício pleno de sua masculinidade na sociedade hegemônica, mas lhe permite usurfruir dos espólios da opressão patriarcal dentro de suas próprias comunidades, dentro da construção discursiva do poder masculino, dentro da estrutura de cuidado e sobretudo, com a dominação sobre mulheres e crianças negras. Além desses casos, se sabe que o fator socioeconômico também lhes permite uma aproximação da aliança masculina hegemônica que nenhuma mulher jamais experimentará sob o Patriarcado — vide os jogadores de futebol e sua ascensão, na qual possuir milhões e mulheres brancas significam uma carta de aceite temporário no clube dos homens “que mais importam”.

Tentar ignorar ou distorcer os fatores que contribuem para uma estratificação sexual dentro das comunidades negras e uma permanência da dominação sobre mulheres negras, não contribui para a emancipação dos homens negros, apenas fortalece a aliança patriarcal. Vivenciaremos uma tomada de consciência quando o paradigma for outro e o desejo não mais ser ter o poder para agir como um homem branco, mas sim ter o poder para ser livre — e consequentemente libertar os outros.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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