No dia 12 de dezembro de 2019, na periferia do Brasil, gestado no coração dos povos menores das águas da Mantiqueira, provocados pelo fim das águas, que estão sendo contaminadas, privatizadas e silenciadas, a partir da realização do II Fama Minerais – Fórum Alternativo das Águas Minerais, ocorreu na cidade mineira de Caxambu o lançamento do livro “Ecologias das águas: o futuro em corrosão”, que organizei em conjunto com Raphael Vianna e Valderí de Castro Alcântara, lançado pela organização da sociedade civil Nova Cambuquira e com o apoio do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, de distribuição gratuita e limitada e formato PDF.
Outros lançamentos ocorreram nas cidades menores do Circuito das Águas mineiro, nas bucólicas estâncias hidrominerais de Cambuquira, Lambari e Conceição do Rio Verde, pendente apenas São Lourenço, que enfrentam batalhas herculanas e seculares contra as empresas de engarrafamento, cuja sede profunda e ânsia pelo crescimento ignora os limites materiais geofísicos da Terra.
O lugar não poderia ser mais simbólico: na periferia do Brasil, as estâncias hidrominerais conservam o arcaísmo da beleza campestre. Resistentes à modernidade, esses são lugares que, embora erguidos pela modernidade, jamais foram modernos, lembrando o filósofo Bruno Latour. E se falamos de resistência à modernidade, tais estâncias oferecem novo fôlego, águas e ares para aprendermos novas coreografias com a Terra, pois entendem e celebram com suas belezas e singularidades aquilo que o resto do mundo perdeu e não tem mais: o encanto, a pequenez, o ar puro, a água, a mata, vários atores humanos e não humanos que, apesar da ânsia predatória, da ganância e da sede das engarrafadoras de água mineral, continuam resistindo.
As cidades oferecem proteção e abrigo para a náusea da modernidade, são mesmo a cura da doença da Terra, cuja condução pelos Humanos chegou a ficar tão grave que passou a nomear uma era: Antropoceno ou matizando, conforme sugestão da filósofa Donna Haraway, Capitaloceno – lembrando o chavão de que é mais fácil imaginarmos o fim do mundo do que o fim do capitalismo! Afinal, estamos vivendo uma catástrofe ambiental sem precedentes e somos nós os causadores. É preciso dar nome aos bois (para lembrar do metano, que já é mais que dobro maior do que no período pré-industrial): são os Homens Modernos, alguns mais do que outros, os responsáveis pelo colapso climático ecológico e, no caso que discutimos no livro, o colapso da água.
Como ser água: o que nos ensinam os povos das águas da Mantiqueira
O livro se faz da composição polifônica de belos textos de povos originários, pesquisadores, ambientalistas, ativistas locais e professores, oferecendo novos ares para o tema das águas. Atravessa questões profundas e problemáticas, como o tratamento jurídico pelo estado brasileiro das águas minerais, que as considera minérios e não águas, sujeitas à exploração insustentável e exaustiva.
Os textos propõem repensar as ecologias das águas em tempos de corrosão, tempos difíceis, de fim do mundo, são mesmo sobre águas do fim do mundo, para falar como o professor e antropólogo Stelio Marras, que assina o texto de abertura.
E isso leva à ganância das engarrafadoras, inclusive, da Nestlé Waters, na estância mineira de São Lourenço, no Circuito das Águas, que, em 2018, após uma série de escândalos e ações judiciais, anunciou a venda de negócios de águas no Brasil à brasileira Indaiá Minalba, do Grupo Edson Queiroz, não sem deixar profundos rastros de morte que, provavelmente, continuarão a ser produzidos.
Como a história demonstra, a valorização da água em um único aspecto, como apenas um produto, causou profundo declínio nas estâncias, o que deu lugar às provocações inquietantes que aparecem no livro, a começar, no século XVIII, pela morte, escravidão e catequização dos povos originários da Mantiqueira e dos africanos escravizados – morte, escravidão e catequização que continuam praticadas contra a multiplicidade ontológica das águas minerais, um bem difuso e com propriedades curativas que tem sido reduzido à esfera mercadológica e enquadrado em um discurso econômico de crescimento irresponsável.
O livro é um ar de renitência e resistência dos povos que lutam contra a mineração, que, em 2019, somou tantos cadáveres, como o crime ambiental em Brumadinho e tantos assassinatos aos povos da floresta, como de Paulo Paulino Guajajara. Agora, está em questão a mineração da água, outra face maligna das minerações.
E se algo aprendemos no Circuito das águas da Mantiqueira é ser água: como atalhar pedras e geografias, transportar vida, mesmo quando tudo parece prenhe de morte, trafegar no subsolo e tecer alianças, conhecimentos valorosos neste ano cinzento de 2019, quando a exploração descontrolada da Terra adquire dimensões imensuráveis.
Quando os munícipes do Circuito falam das águas, não estão falando de outra coisa que não deles mesmos, de correlações e de pertencimento. O planeta é orgânico e tudo está interligado. São povos que aprenderam a ser água e dispostos a defendê-la de corpo e alma.
Em contrapartida, os bolsonaristas e uma parte da elite econômica do país, pensam na riqueza da água como apenas o dinheiro que obtêm de sua extração da Terra, mesmo que, ao minerar, façam minar toda a possibilidade de vida. Da mesma forma como pensam a Amazônia a partir do minério embaixo da Terra e não como toda a riqueza, biodiversidade e importância termodinâmica que, através da evapotranspiração, ajudará a conter o colapso climático ecológico.
O bolsonarismo e a indústria de águas
O crescimento da indústria de águas engarrafadas, liderado pela Coca-Cola, Danone, Ambev e Nestlé Waters é assustador. O controle por empresas multinacionais da água, um bem essencial à vida e cada vez mais escasso, é algo que precisa ser discutido no Brasil, que possui cerca de 12% da água doce disponível do planeta, uma grande parcela desta em solo amazônico.
Toda essa riqueza ambiental gera impactos geopolíticos, coisa que tende a se agravar nas próximas décadas, pois os conflitos e instabilidades sociopolíticas passam pela desadministração do acesso ao recurso natural.
Soma-se a isso o cinismo das empresas, que, com campanhas de marketing, maquiam a realidade dos fatos – como a Ambev na Black Friday, em 29 de novembro deste ano, ao dobrar o preço da água AMA, escorada em um falso “bom mocismo”, para “duplicar a ajuda aos projetos de acesso à água” por ela mantidos, enquanto, por outro lado, é ela mesma que mantém, junto com outras empresas multimilionárias do setor, esse esquema em que, para se ter acesso à água, é preciso pagar.
O poder de tais agentes em obter o controle de um bem de uso comum cada vez mais raro e escasso traz uma promessa de futuro corroído assustadora, com a tendência do aprofundamento do problema e o crescimento das desigualdades sociais.
Isso sem contar a degradação, pois a indústria de águas engarrafadas é uma das mais perversas ao ambiente, englobando toda a cadeia produtiva, da extração, produção e distribuição ao descarte, que envolve desde o petróleo no transporte ao redor do mundo até o acúmulo de lixo, lembrando que o descarte das garrafas é feito em um lixão ou, quando incineradas, transformadas em gases tóxicos na atmosfera.
A água está no epicentro da escalada de violências no mundo, pois haverá sede. Lembremos de Cochabamba em 2000, quando inclusive a água da chuva foi privatizada, estourando uma guerra sem precedentes. Sendo uma das indústrias mais perversas e ambientalmente irresponsáveis de todas, em um cenário em que, dentre as próximas décadas, a demanda por água superará a oferta em cerca de 40%, falar em controle da água é uma questão de cidadania.
No Brasil, como esperado do governo bolsonarista, o poder público está na contramão da ética ambiental e das políticas socioambientais. Quanto ao tema abordado pelo livro, a privatização da água, a Presidência apoia o PL 3261, aprovado na Câmara dos Deputados, que busca entregar nossas águas para a iniciativa privada, de autoria de Tasso Jereissati, senador milionário participante da família Jereissati, acionista brasileira do grupo Solar Coca-Cola, joint venture brasileira de engarrafamento de água e outras bebidas.
O futuro já está mesmo em corrosão, em que microfascismos se pulverizam como venenos; por isso, é preciso reinventarmos juntos novas formas e mundos, outras águas, outros antídotos, outros livros.
Reinventando o próprio formato editorial, Ecologias das águas: o futuro em corrosão é uma das importantes formas de pensar o fim das águas, reunindo vozes obstinadas no sentido de que repensar não as águas, mas com elas, é possível! E se o fim delas é mesmo inevitável, que seja outro o fim: o da visão mercadológica dos modernos, essa Terra dos Humanos, especialmente daqueles do centro do mundo, ilhados em suas megalópoles ultra-tecnológicas, em que tudo vira mercadoria.
Através de visão multidisciplinar e recusando a fabricação de soluções fáceis pela perspectiva salvacionista humanista, que é, lembre-se, igualmente antropocêntrica, o livro propõe alterações no tratamento da água mineral. Um novo enquadramento é buscado, não como minério, mas como recurso hídrico diferenciado, patente o interesse do atual arranjo em favorecer o mercado de engarrafamento, que desconsidera de sua gestão os povos residentes na região, fragiliza a democracia e aprofunda a lógica exploratória.
Dentre os “inimigos” do governo, em um ano que a Amazônia ardeu de uma forma impensável, nada poderia ser mais simbólico do que ouvir os “terranos”, para falar novamente com o filósofo Bruno Latour. Por “terranos” entendemos os que deixaram de ser Humanos e passaram a se perceber como “seres viventes na Terra”, povos que ensaiam novas coreografias com a Pachamama. Neste livro, são com os aquanos – os povos viventes com as águas! – que vamos aprender novos mergulhos!
De um ano esbaforido como 2019, terminá-lo com a tomada de ar para novos mergulhos é no mínimo revitalizante. Diante do futuro em corrosão, trata-se mesmo da proposta de construção de outro futuro, uma relação diferente com as águas e com o próprio modo de viver para além delas.
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