Roberto Amaral

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Cientista político, ex-ministro da Ciência e Tecnologia e ex-presidente do PSB. Autor de História do presente- conciliação, desigualdade e desafios (Editora Expressão Popular e Books Kindle)

Opinião

É preciso colher lições de golpes passados

Por óbvio que 1964 é historicamente irrepetível, mas fica a lição, pois continuamos defensivos

A maioria aprovava as reformas propostas por Jango no Comício da Central do Brasil A maioria aprovava as reformas propostas por Jango no Comício da Central do Brasil
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Quais as reais ameaças que pairam sobre o processo democrático brasileiro, nos estertores de um governo que prega o golpe e denuncia o processo eleitoral, tendo à sua ilharga o ministro da defesa e uma penca de engalanados, e seus aficionados,  pedindo o fechamento das instituições, clamando por ditadura já?

Que esperar de um congresso dominado pelo que há de mais peçonhento na política brasileira – o Centrão–, de uma casa-grande que não se farta de tantos privilégios e os vê sempre ameaçados quando imagina a emergência de um governo comprometido com os interesses das grandes massas?

Dessa casa-grande só se pode esperar algum tipo de violência, quando não lhe é dado impedir a eleição de um estranho no ninho dos donos do poder.

É desafiador dimensionar os riscos hoje vividos, pois são flagrantes as dificuldades de as forças progressistas trabalharem com o mínimo de informação, por debilidade orgânica e mesmo por distorção ideológica – caso que foi do Partido Comunista, que, às vésperas do golpe de 1964, exatamente no dia 17 de março, garantia-nos, pela voz de seu secretário-geral, ser impossível um golpe de Estado, aquele de tipificação clássica que pressupunha tanques nas ruas.  E acrescentava: caso houvesse uma tentativa de golpe, “a direita quebraria os dentes”. Porque, pontificava então o antigo Cavaleiro da Esperança, com a autoridade que ninguém ousaria negar: “as forças armadas brasileiras eram legalistas”. “A quais forças armadas, porém, se referia Prestes?”, perguntamos hoje os crédulos de então. Seriam as do levante de 1935? As do golpe de Estado de 1937? As forças armadas germanófilas de Góes Monteiro e Eurico Gaspar Dutra? As forças do golpe de 1945? Ou as forças que comandaram a insurreição que levou ao 24 de agosto de 1954? Ou ainda os malfeitores de Aragarças e Jacareacanga? Ou os engalanados que tentaram impedir a posse de Juscelino Kubitscheck (eleito em 1955), ou, por fim, os generais que se sublevaram 1961 contra a posse de Jango e impuseram o golpe do parlamentarismo?

Desinformação ou desvio ideológico?

A desinformação do “Partidão”, porém, era mais que uma deficiência orgânica, pois resultava de injustificada incapacidade de compreender o real significado do processo histórico. Simplistas na reflexão, o partido comunista e suas então extensas áreas de influência haviam renunciado à visão marxista de revolução,  embriagados seus dirigentes pelo ingresso informal na institucionalidade, de que passavam a depender, e nem por sonho queriam ver ameaçada. Presos às aparências, transformaram em realidade o sonho da conquista do poder pelas artes do estado burguês, e, assim, tornou-se moeda corrente a crença de que a revolução social brasileira, assim pensada sem povo, era um puro determinismo, uma realidade palpável. Daí o imobilismo pré-1964, e daí a surpresa do golpe levando à cadeia os que não tiveram tempo de fugir. Daí a crise ideológica e política que se segue levando de roldão as organizações de esquerda.

A concepção revolucionária fôra substituída pela reforma dentro do regime, levada a cabo pela ordem militar, garantida pela fidelidade dos generais ao presidente da República, de quem não se podia cobrar o comando da revolução social. Quando Prestes dizia que as forças armadas não dariam o golpe, porque eram democráticas,  estava dizendo que novos tempos vinham a caminho, e se esses novos tempos de avanços e progressos estavam garantidos, com nada tínhamos que nos preocupar, e muito menos tínhamos o que fazer. Esta era a sensação que vivíamos naquele março de 1964: não nos competia, a nós povo, qualquer tarefa, pois o processo social, em marcha, cuidaria de levar a cabo o que estava programado pela história. Assim, os quem temiam o conflito, embora desejassem o avanço social, descobriram que o futuro nos reservara a bonança; não se tratava, mais, da “tomada do poder”, simplesmente porque já estávamos no poder, e desta feita escoltados pelas baionetas.

De outra parte, debilitada pelo fracionamento ideológico, dividida por disputas intestinas, a esquerda não lograra unidade de ação. Conformava-se a defesa das “reformas de base”. Jango, Brizola, Arraes e Julião não se entendiam, e cada um via no companheiro um adversário no exercício de um poder que ainda não haviam conquistado, tarefa que repousava nas costas de “generais do povo” como Osvino Alves (comandante do primeiro exército) ou o almirante Aragão, comandante dos fuzileiros navais. UNE, Ação Popular, CGT, Partido Comunista, cada grupamento brandia sua própria e particularíssima visão do processo político, e cada um remava de acordo com seus objetivos, sempre presos ao imediato.

A UNE, por sinal, esticava a corda pela esquerda, sem, contudo, confiar em Jango: ao lado de Miguel Arraes, Brizola e Arraes, sua arregimentação foi decisiva para a derrota do pedido de estado-de-sítio apresentado por Jango ao Congresso Nacional em setembro de 1963. Seu receio era que, deposto Carlos Lacerda, governador direitista da Guanabara, objeto explícito da medida, o governo, para acalmar os conservadores, oferecesse a cabeça de Miguel Arraes, o governador esquerdista de Pernambuco. Diante da resistência de suas próprias bases (custa crer que não as tenha consultado), o presidente João Goulart recua e retira do Congresso sua mensagem. O fatal sinal de fraqueza foi o estímulo que aguardavam as forças civis e militares articuladoras do golpe. Nessa altura, UNE, CGT e os partidos de esquerda, nesse rol incluídos o partido comunista e a Ação Popular (grupamento católico reconhecido como se partido fôra) já discutiam a formação de um governo dito nacional-popular. Disputavam-se os ministérios enquanto Castelo Branco, instalado no comando do Estado Maior do exército, articulava o golpe.

Todas as análises partiam do pressuposto de que as fileiras não apenas asseguravam a continuidade do governo João Goulart como, no limite, provocadas, seriam as responsáveis pela imposição das reformas que o Congresso, dominado pela reação, se recusava a implantar. Falava-se num poderosíssimo “dispositivo militar do General Brasil”, garantidor de nossa tranquilidade. Era nesse dispositivo, e na fidelidade de generais como Amaury Kruel, comandante do segundo exército, e não na organização popular, que o PC, a esquerda em geral e Jango depositavam a segurança do governo e da democracia.

Na manhã do dia 31 de março daquele doloroso 1964, o senador Artur Virgílio Filho, líder do PTB no Senado Federal, é informado, em Brasília, de que o general Mourão Filho estava com suas tropas se deslocando para o Rio de Janeiro, e, apreensivo, telefona ao presidente no Palácio das Laranjeiras,  não para dar-lhe conta da má nova (pois mais informado do que toda gente haveria de ser o presidente), mas sim para obter orientações. Almino Afonso, então líder do PTB na Câmara dos Deputados, narra-nos o diálogo, conclusivo da penúria estratégica do governo e da fragilidade do projeto que tanto entusiasmava a esquerda brasileira:

“Por uma extensão telefônica, eu ouvia o diálogo. E fiquei pasmado quando a réplica [do presidente] veio calorosa. ‘É a oposição farsante querendo tumultuar o país!’ Naquele momento, nas imediações de seu gabinete, passara o general Assis Brasil, chefe da Casa militar. O presidente, sem rodeios, perguntou-lhe asperamente: ‘O que há de verdade na sublevação do general Mourão Filho?’ E o interrogado, com absoluta calma: ‘Tudo fantasia, presidente. Trata-se de uma marcha de rotina, como é de hábito no exército.’ O presidente Goulart insistiu: ‘Nada demais?’ E o chefe da Casa militar: ‘Nada além disso.’ O presidente João Goulart voltou ao telefone: ‘Tu ouviste, Artur? Pois é essa a verdade!’” (Este diálogo está no precioso livro 1964 na visão do ministro do trabalho de João Goulart, Almino Affonso. Ed. Fundap-Imprensa Oficial do Estado de São Paulo).

O que lemos, revelador da dramática fragilidade do regime, do isolamento do presidente e da treta que era seu “dispositivo militar”, se dera na manhã do 31 de março, vimos. Mas até a tarde desse dia nada mudara, pondo de manifesto a falência do dispositivo militar, e a irresponsabilidade dos que nele depositaram os destinos da democracia brasileira.

O general  que levantada as tropas sob seu comando em Minas Gerais  (Olímpio Mourão Filho, Memórias de um revolucionário. Porto Alegre: L± 1978. P. 311), relata que naquela tarde do dia 31, o presidente João Goulart recebia em audiência o general Peri  Beviláqua que fôra às Laranjeiras, a pedido do general Castelo Branco e do brigadeiro Correia de Melo, chefe do estado-maior da aeronáutica, aconselhar o presidente tomar “as medidas capazes de inspirar confiança à Nação”.  Escreve o general Mourão: “Cerca de 18 horas o ministro da Justiça, Abelardo Jurema, pediu licença e deu ao dr. Goulart um bilhete que leu. Finda a leitura, antes que o general Peri recomeçasse, o dr. Goulart lhe disse: ‘General, o general Mourão revoltou a 4ª Região Militar em Minas e exige a minha renúncia.’ Somente naquele momento o ex-presidente ficou sabendo que eu me revoltara e exigia sua substituição.”

Não se sabe se àquela altura o general Assis Brasil ainda se encontrava no Palácio das Laranjeiras.

Os tempos são outros, o quadro internacional é outro,  o país é outro, outras são as forças armadas, e os chefes militares operam de forma distinta distintas formas de intervenção na institucionalidade. Por óbvio que 1964 é historicamente irrepetível, mas fica a lição, pois continuamos defensivos, atuando em resposta aos estímulos dos golpistas.

* Com a colaboração de Pedro Amaral

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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