Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

E lá se foi a última relíquia: a minha cadernetinha de papel

Nela, anotava os aniversários dos amigos, amigas e muita gente bacana. E anotava também a morte de cada um, quando a hora chegava

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Era nessa época do ano, meados de dezembro, que eu perambulava pelas papelarias da cidade em busca da mais bonita agenda do ano novo que estava chegando. Era fanático por agendas e todo dezembro escolhia uma diferente. Comecei com aquela da Unicef e fui sofisticando. Já tive agendas com capa de couro, agendas ecológicas, plastificadas, de capa dura, em espiral, todo tipo de agenda.

Escolhia uma, comprava, levava para casa e a primeira coisa que fazia era preencher aquele formulário da página 3. Nome completo, endereço com CEP, telefone, endereço comercial, carteira de identidade, CPF, tipo de sangue, nome do médico, para quem telefonar em caso de urgência, eu preenchia tudo.

Depois, onde estava o dia 1º de janeiro, escrevia em letras garrafais:

Feliz Ano Novo!

Na agenda, anotava tudo, minha vida. Contas pra pagar, os filmes que via, os livros que lia, as reportagens que guardava, os fatos importantes, as viagens, os exames médicos. E também: mandar por meia sola no sapato, comprar presente amigo secreto, ir ao dentista, comprar fita pra máquina, essas obrigações do dia a dia. Ligar pra madrinha, consertar óculos, pagar jornaleiro, caixinha dos porteiros.

Sempre fui louco por papelaria. Era capaz de passar uma tarde inteira numa, em busca de cadernos descolados, cadernetas de endereço de A a Z, envelopes, post-its, canetas Stabilo Boss, papéis especiais, bloquinhos, etiquetas, colas, pastas, eram tantas coisas que eu até me perdia ali dentro.

 

A última relíquia que ainda tinha aqui no meu escritório nesse finalzinho de dois mil e dezenove, era uma velha cadernetinha com capa imitando couro, onde anotava os aniversários dos amigos, amigas e muita gente bacana. E anotava também a morte de cada um, quando a hora chegava.

No primeiro dia do ano, quem faz aniversário é o doutor Drauzio Varela e no último, a Rita Lee. Nunca me esqueci. Com um marcador de livro, ia seguindo os dias, uns após os outros, lembrando de cada nascimento, de cada morte.

No dia 16 de agosto, por exemplo, morreu Dorival Caymmi e no dia 10 de março é aniversário da Cristina Serra. Sei que no dia 2 de setembro é Arnaldo Antunes quem faz aniversário e foi no dia 18 de janeiro que morreu o Walmor Chagas.

A caderneta, chamada Nascimentos & Mortes, chegou ao fim desse ano bem estropiada pelo manuseio diário, depois de décadas de bons serviços prestados. As bordas começaram a descascar, as páginas a amarelar, a letra a sumir. Foi então que resolvi aposentá-la de vez. Mas, antes, passei tudo pro computador.

João Cabral de Melo Neto morreu no dia 9 de outubro e a Zélia Gattai no dia 17 de maio. Tenho anotado os aniversários da Rose Cruz, da Olivia Moss, da Isadora Ferro, da Guta Nascimento, Sandra Espilotro, da Marcia Dal Prete, da Marcia Bindo, da Simonetta Persichetti, gente que vocês nem conhecem.

Tenho anotado o aniversário da Maju Coutinho, da Sandra Annenberg, da Zileide Silva, da Michelle Loreto, amigas do peito.

Até da Yoko Ono eu sei o dia do aniversário: 18 de fevereiro!

Todos os parentes, tios, primos, sobrinhos, netos, irmãos, estão lá. Aqueles que comemoram seus aniversários, os que não gostam de comemorar, aqueles que andam sumidos e os que foram embora para nunca mais. Sei o dia do aniversário de todo mundo.

Mas agora, nunca mais vou abrir, toda manhã, a primeira gaveta à esquerda da minha escrivaninha e consultar a tal cadernetinha velha de guerra. Em 2020 irei direto no computador, no Word, na pasta Nascimentos & Mortes. Daqui pra frente tudo vai ser diferente, como cantava Roberto Carlos, que faz anos no dia 19 de abril.

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