Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

Nosso Apartheid foi chegando devagarinho, com um mourão de ferro

Está faltando apenas um tanque de guerra na porta, daqueles que invadiram Praga. Quem sabe, assunto da próxima reunião no salão de festas

Higienópolis (Foto: Wikimedia Commons)
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Começou assim de repente, quando um moreno alto e magro vestindo um macacão azul marinho respingado de tinta perfurou a grama e enfiou o primeiro mourão de ferro. Depois veio o segundo, o terceiro, trinta ao todo.

Da janela do décimo segundo andar de um prédio antigo, esquina de Rua Sabará com Avenida Higienópolis, eu assistia à cena. Os mourões iam ficando de pé, concretados na base, como se estivessem em fila. Passaram a noite assim.

No dia seguinte, bem cedo, lá estavam dois operários descarregando as grades de ferro de uma Kombi cortada, transformada em camionete. Dois outros operários, ambos fortes, iam empilhando aquela montoeira de ferro em blocos distantes uns vinte metros uns dos outros.

Só depois do almoço, começaram a montar a grade que ia cercar o meu prédio daqueles que os condôminos chamavam de inimigos. A noite chegou, eles foram embora, faltava pouco pra grade completar. Uma grade zincada, grossa, resistente.

Quando aqui cheguei, nos primeiros dias de 1980, depois de longos invernos, nenhum prédio era cercado por grades. Os jardins que circundavam, davam o ar da graça de uma cidade quase do interior. Sabiás e rolinhas se divertiam catando minhocas, até que os cães chegavam latindo, espantando todas, que saiam em revoada.

No meu prédio, o jardim era muito bem cuidado. Bromélias misturavam-se com as palmeiras, russélias, agapantos, zamioculcas misturavam-se com os lírios amarelos e as primaveras vermelhas. O gramado era verde o ano inteiro graças a uma engenhoca de irrigação inventada por Seu Antônio, o zelador.

As pessoas que circulavam por ali, para entrar no prédio, bastava dizer em que apartamento iria. Sem interfone, era sempre uma surpresa quando a campainha tocava.

– Quem será?

Bastaram dois dias para que a grade ficasse inteiramente pronta, instalada, pintada de verde, com portão e fechadura. Ninguém mais entrava, ninguém mais saia daquele prédio sem uma rígida identificação.

Não tenho números que me indique o tamanho da violência naqueles primeiros meses de Brasil novamente. Era certamente menor do que hoje, menos assaltos à mão armada, menos mortes, nenhum roubo de celular porque ainda não havia celular nas mãos de ninguém.

Andando pelo bairro fui percebendo que todos os prédios, dos clássicos aos modernistas, dos simplórios aos sofisticados, foram ganhando grades um a um, dia após dia.

O tempo passou e todas essas grades foram ganhando um plus, cercas elétricas de 45 centímetros tornando-as maiores ainda, agora com dois metros e quarenta e cinco centímetros de altura.

Nas reuniões mensais no salão de festas, sentia que todos os moradores estavam felizes, seguros de si, cercados. Depois vieram as guaritas, mais tarde as guaritas blindadas e, pouco depois, cercas de arame farpado envolvendo a cerca elétrica assassina.

Agora temos interfone, temos um buraco na grade para o menino do iFood passar a pizza e um dispositivo para ler nossa digital porque só assim o portão abre. Vieram as câmeras vigiando a calçada, o jardim, a guarita, os corredores, o elevador, o parquinho, o hall de cada andar.

Assim, Higienópolis foi virando um bairro com pequenos bunkers por todos os lados. Nos últimos dias, começaram a aparecer portas giratórias com detector de metais e maquininhas para fotografar o rosto do visitante antes de subir.

Está faltando apenas um tanque de guerra na porta, daqueles que invadiram Praga. Quem sabe, assunto da próxima reunião no salão de festas, segunda-feira que vem.

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