Aldo Fornazieri

Doutor em Ciência Política pela USP. Foi Diretor Acadêmico da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), onde é professor. Autor de 'Liderança e Poder'

Opinião

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Duas tragédias

Diante das urnas, os argentinos serão obrigados a escolher entre um carreirista incompetente e um candidato a ditador

Sergio Massa e Javier Milei disputarão o segundo turno na Argentina. Foto: JUAN MABROMATA e Tomas CUESTA/AFP
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As eleições presidenciais argentinas inscrevem-se no contexto da trágica normalidade da América Latina. Essa trágica normalidade pode ser definida, sinteticamente, como a incapacidade das elites políticas, econômicas e dos atores sociais de produzirem mudanças inovadoras significativas que provoquem uma redução drástica da pobreza, da exclusão social e da violência. Nem as direitas, nem os centros políticos, nem as esquerdas se mostram capazes de mudar a realidade. Quando conseguem dar cinco passos à frente, depois emendam em dez recuos.

Os sistemas políticos latino-americanos estão dominados pelos oligarcas dos partidos, que ditam os termos das ­disputas, as repartições dos orçamentos, os privilégios políticos e os favorecidos econômicos. Os partidocratas, à esquerda e à direita, se insularam do social: não representam grupos sociais organizados, mas eleitores. E esses últimos são capturados por estratégias de marketing eleitoral. Os aristocratas partidários que governam nas diferentes esferas do Estado são invariavelmente incompetentes, geralmente corruptos, bastante demagogos e pouco afeitos à responsabilidade fiscal. Não mudam as estruturas da iniquidade social e da injustiça. Oferecem programas sociais compensatórios aos pobres.

Com certa frequência, o sistema de domínio das aristocracias partidárias entra em crise. Em regra, ocorrem retrocessos, com a ascensão de grupos mais extremados de direita. Jair Bolsonaro foi fruto dessa crise. As distribuições das benesses do poder durante o governo Dilma Rousseff deixou de satisfazer um campo majoritário que poderia dar sustentabilidade ao governo. Michel Temer foi um gigantesco fracasso. Este primeiro ano do terceiro mandato de Lula mostra quão árdua é a tarefa de negociar a distribuição dos benefícios do poder e garantir uma estabilidade mínima.

O fenômeno Milei na Argentina é produto do mesmo processo. Nesses momentos, surgem candidatos de ruptura, antissistema. Bolsonaro foi isso, o que não significa dizer que Milei seja igual a Bolsonaro.

Escolher entre Sergio Massa e Javier Milei é optar por uma entre duas tragédias. Massa é um oportunista, um carreirista incompetente. Não se move por ideias, e sim pelo apetite do poder pelo poder. Como ministro da Economia, está legando ao país uma das maiores inflações da história: 138% ao ano. Já trafegou por vários agrupamentos políticos, segundo as conveniências pessoais. Agora é um peronista de direita. O mesmo peronismo que, com a contribuição do direitista Mauricio Macri, afundou a Argentina numa crise social e econômica interminável. Com uma dívida impagável, hoje o país tem quase metade da população na pobreza.

Milei é uma tragédia combinada com farsa, cinismo e comédia. Trafega do desequilíbrio e perturbação psicológica ao misticismo singular, criado por ele, ao se aconselhar com o seu falecido cão. Dentro desta confusão, agrega ingredientes neoliberais: privatizações radicais, desregulamentação geral da economia e o fim do Banco Central. Esta proposta não é dele, e sim de Milton Friedman, um dos pais do neoliberalismo. Para esse autor, o Federal Reserve seria o grande responsável pelas instabilidades monetárias dos EUA. Por isso, propunha apenas leis que regulamentassem a moeda, sem uma autoridade monetária.

Milei propõe ainda a dolarização da moeda argentina. Esta proposta se choca com a visão de outra ícone do neoliberalismo: Margaret Thatcher. Quando era primeira-ministra, ela discursou no Parlamento britânico contra a adesão ao Tratado de Maastricht, afirmando que, se os ingleses abrissem mão da libra em favor do euro, estariam abrindo mão da soberania.

Ao contrário de Bolsonaro, Milei adota um libertarianismo extremado: os indivíduos são senhores absolutos de suas liberdades, das disposições de seus corpos e das escolhas que fazem, inclusive sexuais e no uso de drogas. Ele vai além do Estado mínimo. O Estado não passa de uma organização criminosa. Deveria ser extinto. Por caminhos diferentes, Milei prega a mesma antipolítica de Bolsonaro. É um discurso de carteirinha dos candidatos a ditadores. Mas, no poder, os antissistema sempre aderem ao sistema. Tornam-se oligarcas da partidocracia, estadocratas e corruptos.

Bolsonaro foi evidência desse fenômeno. Se Milei vencer, seguirá o mesmo caminho. Só restará recorrer ao espírito do falecido cão Canon. Uma tragédia monumental. Por outro lado, se Massa vencer, nada indica que a Argentina encontre um caminho de saída da trágica normalidade. Mas ao menos haverá um jogo político mais milongueiro, um pouco mais previsível, mais enfadonho – uma tragédia monumental atenuada.

Publicado na edição n° 1286 de CartaCapital, em 22 de novembro de 2023.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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