Esther Solano

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Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Complutense de Madri e professora de Relações Internacionais da Unifesp

Opinião

Doria deu exemplo de como ser um político detestável

O patético espetáculo de desistir da desistência de ser candidato só reforça o sentimento de antipolítica

O ex-governador de São Paulo, João Doria. Foto: Valter Campanato/Agência Brasil
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É lixo, sujeira, detrito, imundície, porcaria.

É cinismo, sem-vergonhice, indecência, desfaçatez.

É a convicção de que nós, de que o povo, somos imbecis domináveis. É utilizar o povo como uma marionete estúpida, a serviço da própria vontade, porque só a própria vontade é relevante. É tentar manipular o povo, porque a única coisa que importa é a fome de poder.

Vale tudo para chegar ao Planalto. Vale manobrar, falsear, mentir, trapacear, trair, descumprir, esfaquear as costas, esfaquear o peito. Pelo poder, tudo

Vale tudo por uns minutos de holofote. Por focos, por fotos, por manchetes, por coletivas, por capas. A vida do povo transformada em simples espetáculo. Um espetáculo decadente, dramático, patético.

Tudo isso, para mim, foi o que aconteceu com o episódio lamentável do dia do “vou embora, mas fico” de João Doria.

Um espetáculo obsceno. Um exemplo altamente pedagógico de primeiro ano da graduação em como ser um político detestável. Um exemplo tão irrefutável que produz calafrios, de que, para alguns, política é só poder, o restante… o restante não existe, o restante é destruível. Mas o restante somos nós.

Programa? Que programa? Debate de ideias? Que ideias? Projeto de país? Qual país?

Só a rampa do Planalto existe. Só a rampa do Planalto importa. Só a rampa do Planalto significa alguma coisa. Só a rampa do Planalto. E faça-se o que deve ser feito, porque a rampa do Planalto merece o esforço.

Como analista social que sou, passei a “quinta-feira do fico” com o nariz colado na tevê, primeiro pensando que Doria tinha desistido da corrida presidencial. Ufa, a gente se livrou do Doria. Vá embora, governador, com seus 2% de intenções de voto. Não deixará saudades. Não, pera aí, carta do presidente do PSDB? Aquela carta do tipo “Joãozinho, não vai embora não, mas… melhor, vai”. Quatro da tarde, coletiva de imprensa, eu com o nariz colado na tevê, e o Doria sorrindo, abraçando, exultante, realizado, pletórico, satisfeito. Fico. Fico porque o povo me chama. Fico porque o País precisa de uma liderança moderada, incorruptível, séria, honesta. Fico porque o País precisa de mim.

Na verdade, a minha vontade é de chorar. É tudo imensamente triste.

O povo brasileiro passa fome. Não consegue botar comida decente na mesa. Não consegue pagar boleto. Não consegue um trabalho decente. A pandemia ainda não acabou. Há gente morrendo, famílias em luto. É luta pela sobrevivência. Os sonhos ficaram de lado. Outra vez. A esperança, a palavra que ficou no esquecimento. Outra vez. Mas o que importa é a rampa do Planalto

É imensamente triste assistir, ao vivo e em cores, ao jogo asqueroso que a política pode ser.

Uma das questões que mais aparecem nas entrevistas que realizo com a população é o fato, absolutamente comum, de os eleitores se sentirem abandonados pela política, descartáveis, humilhados pelos jogos de poder de quem só pensa na rampa do Planalto. Uma política feita por elites e para as elites, em que só a ambição é válida.

E, de repente, chega um Bolsonaro, dos tantos que ainda virão, e ganha a esperança daqueles desesperançosos, daqueles que sempre se sentiram ultrajados pelos políticos que só almejam a rampa do Planalto. E chega um Bolsonaro, ganha, e nos preguntamos, assustados, por quê.

A política é um lixo, é tudo corrupto, é só benefício pessoal. Fecha o Congresso. Tira essa corja daí. Fora todos. É tudo igual. Não, mas veja bem, senhor, senhora, nem todo político é igual, há político decente, há político que se preocupa com o povo, há político que luta pela nossa dignidade, há político que se importa por algo além da rampa do Planalto, há político que se importa com você.

Sim, temos de nos reencantar com a política. Temos de nos reconectar com os partidos com a população, temos de estar nas ruas, nos bairros, mostrar que a política pode ser outra coisa, que a política é outra coisa, porque sabemos que a antipolítica, o antipartidarismo, só engendra monstros.

Mas, em dias como a “quinta do fico”, eu sinto um nó no estômago. Um misto de desprezo e desilusão. Fica um sentimento de amargor, de tristeza, que só irá embora quando o próximo Datafolha mostrar Doria empacado no seus 2%. Provavelmente, esse sentimento de amargor se transforme em outro, no sentimento de uma pequena vitória vingativa dessas que, às vezes, salvam os nossos dias.

Por enquanto fica o amargor. Porque só a rampa do Planalto importa. •

 

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1203 DE CARTACAPITAL, EM 13 DE ABRIL DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A volta de quem não foi”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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