Opinião

Do pessoal ao comunitário

Talvez a nossa época nos demande exatamente essa revolução: da participação e da democracia participativa

Foto: Perry Grone/Unsplash
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“O despotismo é três vezes criminoso. Não te esqueças de que é melhor ser vítima do que carrasco.”
— Anton Tchekhov

O Che Guevara libertara Cuba da ditadura de Fulgêncio Batista, mas, sendo argentino, queria libertar também sua pátria e toda a América Latina – que percorrera em moto – do imperialismo, que nos reduz à condição de colônias. Por isso, foi assassinado na Bolívia, em operação armada pela CIA.

Entretanto, a boa semente, ao cair na terra, morre, floresce e frutifica. Atualmente, a Argentina é um país modelo mundial no combate ao covid-19, bem ao contrário do Brasil. Foram necessários 50 anos, mas a semente germinou. No Brasil, vemos muitas manifestações que minimizam a vida, principalmente de idosos; trabalhadores e trabalhadoras que se utilizam de transportes coletivos; além de moradores de favelas, impossibilitados de isolamento social.

As referidas manifestações oligárquicas comprovam o que sabíamos: no Brasil, o capital é gerado principalmente pela mais valia produzida pelos trabalhadores e trabalhadoras. Nenhum capitalismo do mundo explora tanto a classe trabalhadora, como a desigualdade social local indica e denuncia, sendo o Brasil, de fato, o país mais iníquo do mundo.
No entanto, também há luzes no horizonte desta pobre pátria.

Uma delas: a chegada aqui de ONG que denuncia as empresas que fazem publicidade em sites de fake news. Mais de 30 delas já iniciaram diálogo com a citada ONG. Não resta dúvida de que foram as fake news que levaram à eleição do governo fascista no Brasil. Vale lembrar que a prática é recorrente no país, datando de mais de um século. A propósito, discorreu o sempre brilhante Lima Barreto, em “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, sobre uma revolta popular estimulada por um “hipotético” jornal “O Globo”:

“O motim obrigara o presidente a demitir a maioria dos ministros, isto é, os ministros atacados pelo O Globo; o prefeito e o chefe da polícia também saíram… O diário… ficou sendo quase a sétima secretaria do Estado. As nomeações saíam de lá e as demissões também. Bastava um aceno seu para um chefe ser dispensado, e bastava qualquer dos seus empregados abrir a boca para obter os mais rendosos lugares… Os empregos foram assim satisfazendo a natural voracidade dos auxiliares… Todos eles viviam agora calmos, sorridentes, satisfeitos, convencidos de que tinham moralizado a República. Tudo ia bem e a administração fazia-se com a moralidade e a limpeza de uma pequena casa burguesa… O jornal passou do mais formal pessimismo ao otimismo mais idiota.” Alguém reconheceu nessa “ficção” 1954, 1964 e 2016?

Ao grande observador, tampouco escapou ironizar sobre o ofício dos diplomatas: “- Oh! A diplomacia! Vocês não imaginam o que é! É a mais deliciosa vida que há… Entra-se em toda parte, tem-se os melhores lugares; é-se cercado, animado… Uma delícia! Pôde-se ser burro ou inteligente que é o mesmo! O secretário da Inglaterra, mr. Lodge, era uma besta, mas uma besta perfeita… Alto, vermelho que nem um tomate, desengonçado, incapaz de dar um passo de valsa ou marcar um cotillon; entretanto, parecia um rei nas salas… Mas era a Inglaterra, rica e opulenta, que estava atrás dele, e era também o prestígio da profissão que o aureolava…”.

Na tentativa de entendermos o momento atual no Brasil, seus perigos e oportunidades, vale lembrar também a grande filósofa política Hannah Arendt, em “Liberdade para ser Livre”, da Editora Bazar do Tempo:

“Mesmo as revoluções do século XVIII não podem ser compreendidas sem que se perceba que elas irromperam primeiramente quando a restauração era seu objetivo… é verdade para a França, onde, segundo as palavras de Tocqueville, ‘podia-se acreditar que o objetivo da revolução por vir era a restauração do antigo regime, ao invés de sua derrubada’. É, no curso de ambas as revoluções, quando os atores se deram conta de que estavam embarcando em uma empreitada inteiramente nova, em vez de retornar para qualquer coisa que a precedera, quando a palavra “revolução” consequentemente foi adquirindo seu novo significado, foi Thomas Peine, entre todas as pessoas, quem, ainda mais fiel ao espírito da época passada, propôs com toda seriedade chamar as Revoluções Americana e Francesa de “contrarevoluções…”

“Assim, o que de fato aconteceu no fim do século XVIII foi que uma tentativa de restauração e recuperação de antigos direitos resultou exatamente em seu oposto: um progressivo desenvolvimento e a abertura de um futuro que desafiava todas as demais tentativas de agir ou pensar em termos de um movimento circular ou giratório…estavam em questão aqueles direitos e liberdades que hoje associamos ao governo constitucional e que são devidamente chamados de direitos civis. O que não se incluiu neles foi o direito de participar nos assuntos públicos.”

Talvez a nossa época nos demande exatamente essa revolução: da participação, da democracia participativa, dos partidos aos governos, das igrejas aos quartéis. Nesse sentido, recorda-nos, sempre sabiamente, o também argentino Papa Francisco: “A misericórdia nos impele a passar do pessoal ao comunitário”.

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